A malacologia em Portugal
A malacologia em Portugal e nos Açores no tempo de Arruda Furtado
Arruda Furtado nasce numa época em que as ciências naturais e, em particular, os estudos malacológicos conhecem um desenvolvimento considerável, tanto nos seus fundamentos teóricos, quanto nas suas premissas metodológicas. Estes avanços, fomentados e sustentados pela revolução tecnológica e industrial, a afirmação do espírito positivista e profundas mudanças culturais e intelectuais, pautam as décadas imediatamente anteriores ao nascimento do naturalista açoriano. Quase em simultâneo, Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) e George Cuvier (1769-1832) abrem caminho ao rompimento com as tradicionais categorias classificatórias do Systema Naturae de Lineu. O primeiro, elaborando uma teoria da transformação dos seres vivos, de pendor materialista e mecanicista; o segundo, desenvolvendo os métodos da anatomia comparada no quadro de uma abordagem funcionalista, com o objetivo de compreender a filogenia, contribuem para uma valorização dos invertebrados na ordem classificatória do mundo natural e, em particular, para a emergência da malacologia moderna.1
Os conceitos de diversificação, distribuição e especialização das espécies, associados a estas novas abordagens, sustentam a recolha de coleções de exemplares vastas e diversificadas, em número e origem geográfica. Multiplicam-se as viagens exploratórias e expedições científicas, transformando o globo num laboratório natural à escala mundial. Portugal integra estas novas rotas, transformando-se no objeto de estudo fecundo para muitos malacologistas, na sua maioria de origem francesa e britânica.2 Em 1845, é publicada a primeira monografia dedicada à malacologia portuguesa pelas mãos do naturalista francês Pierre Arthur Morelet (1809-1894), com o título de Description des Mollusques terrestres et fluviatiles du Portugal.3 Por essa altura, surge o primeiro trabalho sistemático sobre moluscos marinhos: o escocês Robert MacAndrew (1802-1873) explora, entre 1849 e 1854, a costa portuguesa (Lisboa, Cascais, Cabo de Santa Maria e Faro), esboçando um quadro da distribuição geográfica das várias espécies nas zonas exploradas.4 Pela sua natureza insular privilegiada, a Madeira e os Açores partilham deste fenómeno, recebendo inúmeros naturalistas estrangeiros. Em 1854, é publicada a primeira monografia dedicada aos moluscos terrestres da ilha da Madeira, da autoria do alemão Johan Christoff Albers (1795-1857).5 Em 1858, é dado à estampa o trabalho do francês Henri Drouet (1829-1900), Mollusques Marins des Îles Açores.6
Este renovado interesse pela malacologia portuguesa, em meados do século, lança as bases para o desenvolvimento do estudo dos moluscos em Portugal que sofre um progresso significativo — em quantidade e qualidade —com a emergência de uma primeira geração de malacologistas nacionais, entre os quais o portuense Eduardo Augusto Allen (1824-1899),7 Jacinto da Silva Mengo (1808-1866)8 e Augusto Luso (1827-1902).9 A paixão pela malacologia atinge ainda as mais altas esferas da sociedade com o envolvimento direto do jovem D. Pedro V (1837-1861), apelidado de rei naturalista pelos seus contemporâneos, e do Infante D. Luís (1838-1889), seu irmão. A partir de 1848, a coleção malacológica, reunida pelos dois no Museu Real das Necessidades (com perto de 4000 exemplares correspondentes a mais de 1400 espécies, em 1861),10 transforma-se numa das mais conhecidas e relevantes em termos científicos na Europa, recebendo a visita de inúmeros naturalistas estrangeiros, entre os quais o célebre Charles Bonaparte (1803-1857)11 e os já citados Morelet e Henri Drouet a quem D. Pedro V patrocina uma expedição aos Açores que resulta, em 1858, na publicação do catálogo sobre os moluscos marinhos dos Açores, já mencionado.12
É neste contexto fervilhante de viagens, investigações e publicações que, em 1859, é recebido On the Origins of Species, obra na qual Darwin expõe a sua teoria da evolução por seleção natural. As ideias de afinidades genealógicas entre organismos, de distribuição geográfica, de colonização por fonte próxima e subsequente modificação orientam, entre outros, os estudos malacológicos e zoológicos, em geral, para a pesquisa dos processos de migração e dispersão.13 Estas ideias, amplamente retomadas no Traité de Zoologie (1868) de Carl Friedrich Claus (1835-1899),14 surgem estruturadas, de forma definitiva, com a publicação de The Geographical Distribution of Animals (1876) do biólogo inglês Alfred Wallace (1823-1913)15 que delineia as diretrizes de uma classificação zoogeográfica da natureza e do globo, sublinhando, ao contrário de Darwin, a prevalência dos fatores ambientais e geográficos nos processos de distribuição e na especiação. Associada à ideia de distribuição, estão duas questões que preocupam os malacologistas da época: a do lugar dos moluscos na hierarquização do reino animal e a classificação hierárquica da própria divisão. A sistemática proposta por Samuel Pickworth Woodward (1821-1865), em A Manual of the Mollusca (1851-1856),16 é paradigmática deste quadro problemático em que se desenvolve a malacologia de então, levando ao enorme sucesso desta obra na sua época. É, com estas questões em pano de fundo, lendo e referenciando estes autores, que Arruda Furtado inicia os seus trabalhos malacológicos ainda muito jovem.17
Notas
1 A respeito do trabalho de Lamarck e da sua importância na revisão das classificações do mundo natural e para a emergência da biologia, ver Pietro Corsi, Lamarck. Genèse et enjeux du transformisme. 1770-1830, Paris, CNRS, 2001; Jean Gayon, Stephane Tirard, Gabriel Gohau, Pietro Corsi, Lamarck, philosophe de la nature, Paris, PUF, 2006. Para Cuvier e a emergência dos estudos de anatomia comparada, Philippe Taquet, George Cuvier. Naissance d’un génie, Paris, Odile Jacob, 2006 e Bernard Balan, L’anatomie comparée et l’histoire des vivants au XIXème siècle, Paris, Librairie Philosophique, 1979.
2 Para um panorama detalhado sobre a história da malacologia em Portugal, ver Luís P. Burnay, António A. Monteiro, História da Malacologia em Portugal, Lisboa, Sociedade Portuguesa de Malacologia, 1988.
3 Pierre A. Morelet, Description des Mollusques terrestres et fluviatiles du Portugal, Paris, Chez J-B Baillière, 1845.
4 Robert MacAndrew, ‘Notes on the distribution and range in depth of Mollusca and other marine animals observed on the coasts of Spain, Portugal, Barbary, Malta and Southern Italy in 1849’, Report of the British Association for the Advancement of Science , 20 (1850), 264-304 e On the Geographical Distribution of Testaceous Molluscs in the North Atlantic and Neighbouring Area , Liverpool, Printed by H. Greenwood, 1854.
5 Johan Christoff Albers, Malacographia Maderensis sine enumeratio molluscorum quae in insulis Maderae et Portus Sancti aut viva extant aut fossilia referientum , Typis Georgii Reimeri, 1854.
6 Henri Drouet, Mollusques Marins des Îles Açores, Paris, Chez J-B Baillière, 1858.
7 Zoólogo, diretor do Museu Municipal e bibliotecário da Biblioteca Municipal do Porto, autor de um Catalogo sistemático da coleção de Moluscos e suas conchas, pertencentes ao Museu Municipal do Porto contendo ao mesmo tempo a caracteristica de todas as familias e generos e principaes considerados scientificas tanto geraes como particulares relativas a esta vasta forma de animaes invertebrados, Porto, Typographia de D. Antonio Moldes, 1856 -1858.
8 Chefe de repartição da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e malacologista amador de renome na sua época, tendo contribuído nomeadamente com a ‘Descripção de um "Helix" novo de Portugal’, Jornal Sciencias Mathematicas Physicas e Naturaes, 1 (1868), 170-171.
9 Professor liceal na cidade do Porto, publicou, entre 1869 e 1873, nos tomos II, III e IV do Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, um conjunto de notas acerca dos moluscos terrestres e fluviais.
10 MUL-MUHNAC, AHMUL, AHMB, Rem. 324. Acerca deste inventário, ver a análise de Carlos Almaça, ‘As colecções de conchas em gabinetes e museus de história natural portugueses’, Açoreana, 7.1 (1989), 17-24.
11 Zoólogo famoso no seu tempo, teve como projeto a redação e publicação de uma Ornithologie générale et particulière de toda a Europa, tendo para tal visitado grande parte dos museus de história natural e coleções ornitológicas privadas da época. Ver A. Reig-Ferrer & X. Ferrer, ‘El viaje ornitológico del príncipe Carlos Luciano Bonaparte (1803-1857) a la Península Ibérica en Febrero de 1856’, CATHEDRAL/BirdLife, Alicante, Local group of Alicante: The Birds in Alicante/Anuário Ornitológico, 2006, 260-271
12 Sobre D. Pedro V e as ciências, ver Filipa Lowndes Vicente, Viagens e Exposições. D. Pedro V na Europa, Lisboa, Gótica, 2003; David Felismino, Patrícia Garcia Pereira, Cristina Luís, ‘Pedro V and the Royal Museum at the Palace of Necessidades, Lisbon (1848-1861)’, Natural History Collections in Portugal and Brazil. New perspectives on Collecting Institutions and Transfers, ed. Maria Margaret Lopes and Cristina Luís, Lisboa, MUL, 2014, 25 pp. [em publicação]
13 Ver, entre outros, Matthias Glaubrecht, ‘On ‘Darwinian Mysteries’ or Molluscs as models in evolutionary biology : From local speciation to global radiation’, American Malacological Bulletin , 27 (2009), 3-23; Brian Morton, ‘Charles Darwin and The Evolution of the Atlantic Ocean, The Macaronesian Islands and the Açores’, Açoreana , 7 (2011), 39-71.
14 Carl Friedrich Claus, Traîté de Zoologie , 2éme édition, Paris, Librairie Savy, 1884.
15 Alfred Russel Wallace, The Geographical Distribution of Animals, 2 vols., London, MacMillan, 1876.
16 Samuel Pickworth Woodward, A Manual of the Mollusca, being a Treatise on Recent and Fossil Shells , 4 th edition, London, Crosby Lockwood, 1880.
17 Arruda Furtado possuía todas estas obras na sua biblioteca, como atesta o Catálogo da Livraria de Arruda Furtado, 1888 [MUL-MUHNAC, AMHUL, Espólio Arruda Furtado, PT/MUL/FAF/A/01/0018]. Além disso, estes autores são alvo de citações e referências constantes, quer nas suas publicações, quer na sua correspondência. Por outr lado, muitas destas obras, provenientes da biblioteca pessoal de Furtado, permanecem conservadas na Biblioteca do Museu Nacional de História Natural e da Ciência.