Estudos de conquiologia e malacologia

Arruda Furtado e os estudos de conquiologia e malacologia

Apesar da variedade das matérias estudadas e da sua ampla conceção da diversidade natural, é sem dúvida aos estudos malacológicos que Arruda Furtado mais se dedica, ainda nos Açores, onde publica as primeiras contribuições, ou em Lisboa, na qualidade de contratado pela Secção Zoológica do Museu Nacional de Lisboa. A leitura de On The Origin of Species e a adesão à teoria evolucionista de Darwin, principalmente no que tange aos moluscos, exercem no espírito de Arruda uma influência marcante, cujas consequências são visíveis tanto nas suas conceções quanto na metodologia de investigação que adota. De um modo geral, à luz do evolucionismo, entende-se facilmente o interesse especial que o naturalista mantem pelos moluscos, pois, pela sua vasta distribuição, espacial e temporal, constituem o instrumento mais adequado ao esclarecimento, por comparação, da origem das espécies do arquipélago dos Açores.1

Apesar do silêncio das fontes sobre a matéria, é possível afirmar que Arruda Furtado se inicia nos estudos malacológicos pela mão de Carlos Maria Machado (1820-1898), com quem colabora, a partir de 1876, na constituição do museu de história natural do liceu de Ponta Delgada. Excursões e recolhas diretas de ambos, ofertas e permutas de museus nacionais e estrangeiros permitem o aumento progressivo das coleções de conchas e moluscos do museu. Já em Lisboa, em 1885, Furtado garante que formou ‘em dois anos uma colecção de perto de 800 espécies contendo muitas acabadas de descrever, outras ex auctor’.2 Esta intensa atividade de colheita e estudo permite-lhe adquirir um conhecimento alargado da diversidade malacológica que, rapidamente, procura pôr em prática de forma independente. Notas e apontamentos dessa época, bem como os esboços das primeiras publicações realizados por essa altura, deixam ainda transparecer um conhecimento atualizado da mais recente produção científica especializada.

Desde cedo, preocupa-se em explicar a distribuição geográfica dos moluscos do arquipélago natal, designadamente, em compreender o contraste entre a escassez de fauna malacológica de água doce e a riqueza dos moluscos terrestres insulares, procurando, ainda, comparar gastrópodes açorianos com continentais. Para tal, privilegia inicialmente os moluscos terrestres por considerá-los mais apropriados aos estudos zoogeográficos do que os aracnídeos, de que se ocupara antes, levando-o inclusive a estabelecer contacto com Eugène Simon (1848-1924). Logo em finais da década de 1870, inicia uma recolha sistemática de moluscos terrestres. Nos cadernos das suas excursões, anota cuidadosamente dia e hora, lugar e habitat, estado do tempo e número de exemplares recolhidos, vivos ou mortos.3 Em termos analíticos, confere particular atenção aos órgãos internos do aparelho reprodutor e digestivo, sem descurar os carateres morfológicos externos, valorizando as afinidades genealógicas, sugeridas pela anatomia comparada, entre organismos. Afastando-se das práticas tradicionais da conquiologia, é dos primeiros portugueses a reconhecer a importância do estudo combinado das características externas e internas para a correta compreensão dos processos de génese, em termos biogeográficos e de especiação. Esta preocupação constante com a observação, a comparação e a correlação de dados anatómicos leva rapidamente Arruda Furtado às suas primeiras conclusões sobre a origem europeia dos moluscos terrestres, a repartição pelas ilhas e os meios pelos quais foram introduzidos nas mesmas.

Contrariamente à previsão teórica aceite, verifica a existência de um número elevado destes moluscos relativamente à área geográfica, e de endemismos açóricos, levando-o a considerar, à luz da teoria evolucionista, que diferentes formas consideradas como espécies são possivelmente graus distintos de modificação de uma mesma espécie. Entende, ainda, que a variação da composição das espécies não acontece inteiramente ao acaso, estando antes correlacionada com a variabilidade ambiental que relaciona com três fatores essenciais: o clima, a geografia, a alimentação. Estas primeiras conclusões são imediatamente publicadas na Era Nova, em 1880, numa nota relativa às maxilas de alguns hélices nos Açores;4 concluída em outubro de 1880, mas apenas levada à estampa em 1881, publica uma análise da distribuição dos moluscos terrestres.5 Nas Indagações sobre a compilação das maxilas de alguns hélices de 1880, construindo a sua análise sobre os trabalhos de Morelet e de Horace Moquin-Thandon (1804-1863) relativos a outros exemplares continentais da mesma espécie, mostra que o número e disposição das caneluras das maxilas, assim como a espessura e solidez da concha, apresentam variações distintas, atribuindo-as à escassez de cálcio no solo e à amenidade do clima que tornam desnecessária uma concha resistente. Na segunda publicação, A propósito da distribuição dos moluscos terrestres nos Açores, sublinha a distribuição ampla e transversal do género Helix e a distribuição, quase exclusivamente confinada às ilhas orientais e Ilha das Flores, do género Vitrina, atribuindo-lhe uma possível origem americana. Adianta, ainda, quatro meios de introdução nos Açores das espécies malacológicas terrestres: i) o transporte pelas aves; ii) a introdução pelo homem; iii) as modificações introduzidas pelas condições do solo (debilitação excessiva da concha e resultados de equilíbrio no organismo geral, fixados lentamente pela hereditariedade); iv) a formação de híbridos, mas colocando em dúvida a teoria darwiniana da dispersão durante o período glaciário. Neste quadro, propõe um modelo de distribuição geográfica dos moluscos dos Açores, que divide em quatro regiões, segundo as especificidades de cada espécie (litoral, de terreno agrícola, de mato e de turfeiras com sphagum), assunto que retomará em publicação subsequente.

É neste contexto, já com provas dadas, que Arruda Furtado contacta Darwin, pela primeira vez, em meados de junho de 1881, apresentando-se como malacologista: ‘a minha vocação natural para a zoologia está totalmente orientada para a malacologia, para a compreensão da introdução das espécies’’.6 Para além de palavras de encorajamento, Darwin retribui esta primeira missiva com um conjunto de recomendações modelares. Muitos delas já guiavam Arruda Furtado na sua investigação, mas incentivam-no a aprofundar aquele que é o seu problema inicial, a distribuição geográfica e a origem das espécies. Darwin alerta o jovem açoriano para diversas questões: a necessária diversificação geográfica dos contextos insulares de recolha (sempre que possível comparar a realidade micaelense com outras ilhas dos Açores e com outros arquipélagos); a extrema importância da variação dos habitats de recolha (zonas litorais baixas vs zonas montanhosas); finalmente, a necessária valorização das espécies em estado fóssil, não descurando as vivas.7 Volvidos escassos dias, Arruda empreende duas excursões ao cimo da Serra Gorda e do Pico da Cruz (São Miguel), durante as quais encontra evidências de variações evolutivas locais.8 Os exemplares aí recolhidos de Helix aspera, Muller, um caracol da família Helicidae, com coloração e rigidez muscular distintas de outros da mesma espécie, reforçam a hipótese da existência de variações evolutivas locais, tributáveis às distintas condições climatéricas e alimentares. Deduz ainda que as espécies primordiais poderiam ter sido introduzidas por marinheiros portugueses, que as usavam a bordo como alimento fresco, assunto que trata em uma nota, publicada na Era Nova, no final de 1881.9

Todavia, a origem das espécies introduzidas poderia ser mais longínqua, conforme sugere a distribuição geográfica de duas espécies de lesmas, então chamadas Viquesnelia atlântica, Morelet & Drouet. O trabalho de Arruda Furtado em torno desta espécie começa ainda em outubro de 1880, com uma excursão às montanhas das Sete Cidades, durante a qual recolhe alguns exemplares. À época, o género, considerado extinto no continente europeu, é apenas conhecido por uma espécie viva, supostamente encontrada na Índia, a Viquesnelia dussumieri, Fischer. Estudada previamente sem dissecação por Morelet e Drouet, a descrição detalhada da sua anatomia interna continuava por fazer, tarefa à qual Arruda Furtado se dedica, descrevendo a constituição, forma, posição do aparelho digestivo e do aparelho reprodutor.10 Nesta ocasião, contacta pessoalmente com Thomas Edward Thorpe (1845-1925), químico inglês, encarregado pelo almirantado britânico de confirmar as determinações magnéticas efetuadas pelos exploradores do Challenger, a residir em Ponta Delgada, desde setembro, de 1880. Tomando conhecimento da singularidade do trabalho de Arruda, Thorpe sugere a Louis Campton Miall (1842-1912), professor de biologia no Yorkshire College e curador do Museum of the The Literary and Philosophical Society of Leeds, o patrocínio da publicação.Ambos acompanham os trabalhos de Arruda, remetendo-lhe material de desenho, lendo e corrigindo provas,11 até à publicação deste trabalho nos Annals and Magazine of Natural History, em meados de 1881.12 O impacto deste estudo tem ainda mais importância uma vez que, escassos anos antes, Thomas Vernon Wollaston (1822-1878), um proeminente entomólogo e malacologista, reiterara, na obra Testecea Atlantica (1878)dedicada à fauna malacológica das ilhas atlânticas, a origem indiana do género.13 A publicação do trabalho, em língua inglesa, seria assim motivo para troca posterior de correspondência com malacologistas prestigiados, colocando Arruda Furtado no seio de uma comunidade científica de âmbito internacional. Entre os correspondentes, destaca-se o engenheiro de minas e malacologista amador Maurice-Armand Chaper (1834-1896),14 o zoólogo Edmond Perrier (1834-1921),15 Otto Bachmann (18??-18??),16 Gustave Le Bon (1841-1931),17 o abade Dominique Dupuy (1812-1885)18 e Cesare d’Ancona (1838-1902).19

Notas

1 São vários os autores que já abordaram os trabalhos malacológicos de Furtado. Para além de Luís P. Burnay e António M. Monteiro, História da Malacologia…, 50-56 e 78-79, e entre outros, ver António Frias Martins, ‘Arruda Furtado na malacologia açoriana’, Açoreana, 7 (1989), 9-16; Carlos Tavares, Ch. Darwin e a origem da flora dos Açores, separata da Naturalia, VII (1957-58), 1-9; G. F. Sacarrão, ‘Sobre o método em Darwin e a episódica relação com Arruda Furtado’, Prelo, nº11 (1986), 81-88; Luís M. Arruda, Sobre os estudos científico-naturais de Arruda Furtado, separata do Boletim do Núcleo Cultural da Horta, Vol. IX (1992), 69-83; ‘Arruda Furtado, um naturalista açoriano do século XIX’, Air Açores, nº 14 (1992), 21-25; ‘Comentários e Notas à obra científica de Arruda Furtado’, Professor Germano da Fonseca Sacarrão, Lisboa, Museu Bocage, 1994, 354, 357-362; ‘Escalas nos Açores, Povoamentos e Evolucionismo vistos por Arruda Furtado’, Portos, Escalas e Ilhéus no relacionamento entre o Ocidente e Oriente, Ponto Delgada, UA/CNCDP, 1999, 429-437; ‘Evolucionismo e Biogeografia na Obra Científica de Francisco de Arruda Furtado e seu contributo para o conhecimento científico das ilhas dos Açores’, As Ilhas e a Ciência. História da Ciência e das Técnicas, coord. Alberto Vieira, Funchal, CEHA, 2005, 266-275.

2 MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, A propósito da projectada exploração científica dos Açores, AF-24, fl. 20.

3 MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Histoire naturelle. Croquis et notes devant nature, AF-4

4 Francisco de Arruda Furtado, ‘Indagações sobre a complicação das maxilas de alguns hélices naturalizados nos Açores com respeito às das mesmas espécies observadas por Moquin Tandon em França’, Era Nova, nº 1 (1880), 135-144. Transcrito em Obra Científica de Francisco de Arruda Furtado,Introdução, Levantamento e Estudo de Luís M. Arruda, Ponta Delgada, Instituto Cultural de PontaDelgada/Instituto Açoriano de Cultura, 2008, 61-72.

5 Arruda Furtado, ‘A propósito da distribuição dos moluscos terrestres nos Açores’, Era Nova, nº 1 (1881),267-283.Transcrito em Obra Científica de Francisco de Arruda Furtado, 73-88.

6 MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Carta de Arruda Furtado a Charles Darwin de 13 de junho de 1881. Transcrita em Carlos Tavares, Quatro cartas inéditas de Charles Darwin para Francisco d’Arruda Furtado, separata da Revista da Faculdade de Ciências de Lisboa, 2ª série, C, Vol. 5- fasc. 2(1957), 296-297 e em Correspondência Científica de Francisco de Arruda Furtado, Introdução, levantamento e notas de Luís M. Arruda, Ponta Delgada: Instituto Cultural, 2002, 107.

7 MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Carta de Charles Darwin a Arruda Furtado de 3 de julho de 1881. Transcrita em Carlos Tavares, Quatro cartas inéditas …, 292-293 e em Correspondência Científica…, 109-110.

8 MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Carta de Arruda Furtado a Charles Darwin de 17 de agosto de 1881. Transcrita em Carlos Tavares, Quatro cartas inéditas …, 299 e em Correspondência Científica…, 112-113.

9 Francisco Arruda Furtado, ‘Pequenas contribuições para o estudo da origem das espécies malacológicas terrestres das ilhas dos Açores. Sobre alguns exemplares de Helix aspersa Müller recolhidas nas paragens elevadas e áridas da ilha de S. Miguel’, Era Nova, 12 (1881), 548-552. Transcrito em Obra Científica de Francisco de Arruda Furtado, 89-94.

10 São inúmeros os esboços de Arruda Furtado da Viquesnelia. Ver, entre outros, os reunidos em MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Histoire naturelle…, AF-4.

11 Ver a correspondência entre Arruda Furtado e Thorpe entre setembro 1880 e junho de 1881, e entre o jovem açoriano e Louis Miall, entre outubro 1880 e novembro de 1885 [MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Correspondência]. Transcrita em Correspondência Científica…, 51-64 e 77-103.

12 Arruda Furtado, ‘On Viquesnelia atlantica Morelet & Drouet’, Annals and Magazine of Natural History, 7, 39 (1881), 250-254. Publicado no ano seguinte, na sua versão portuguesa, ‘Viquesnelia atlantica, Morelet & Drouët’, Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, 32 (1882), 305-308. Ambos transcritos em Obra Científica de Francisco de Arruda Furtado, 96-106.

13 Ver MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Carta de Arruda Furtado para Geoffrey Nevill de 30 de março de 1882. Transcrita em Correspondência Científica…, 258-259. A interpretação coeva estava errada, sendo o género proveniente das Seychelles como Nevill, posteriormente, informará Arruda Furtado.

14 Ver MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, cartas trocadas entre Arruda Furtado e Chaper, entre agosto de 1881 e outubro de 1886. Transcrita em Correspondência Científica…, 120-140.

15 Ver MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Carta de Arruda Furtado para Edmond Perrier, de 18 fevereiro de 1882. Transcrita em Correspondência Científica…, 199-200.

16 Ver MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, cartas trocadas entre Arruda Furtado e Bachmann, entre março de 1882 e abril 1886. Transcrita em Correspondência Científica…, 212-228.

17 Ver MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Carta de Arruda Furtado para Gustave Le Bon, de 18 de maio de 1882. Transcrita em em Correspondência Científica…, 342.

18 Ver MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, cartas trocadas entre Arruda Furtado e o Abade Dupuy, entre junho e setembro de 1882. Transcrita em Correspondência Científica…, 379-387.

19 Ver MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Carta de Arruda Furtado para Cesare d’Ancona, de 2 de junho de 1882. Transcrita em Correspondência Científica…, 360.