Encarregado das coleções

Arruda Furtado, encarregado das coleções malacológicas da Secção Zoológica do Museu de Lisboa

Em março de 1885, Arruda Furtado passa a integrar a Secção Zoológica do Museu Nacional de Lisboa, na Escola Politécnica, com a função de classificar conchas e moluscos, a pedido de José Vicente Barbosa du Bocage (1823-1907) que solicita ao Ministério do Reino a sua contratação, devido à urgência de revisão das coleções. O trabalho de Furtado e a qualidade científica do mesmo já são conhecidos e reconhecidos em Lisboa: publicara no Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes; mantinha relações científicas e epistolares com grande parte da elite académica do país e da capital; remetera sistematicamente, ao longo dos anos, as suas publicações para a direção da Secção Zoológica.1

A entrada como adido no Museu Nacional de Lisboa, à época a maior coleção de espécimes de história natural do país, parece ser a consagração de um percurso científico. Não obstante, a tarefa é árdua devido ao estado deficiente das coleções malacológicas no que se refere à sua classificação e inventário. Apesar do interesse de Barbosa du Bocage pela malacologia (dedicou-se pessoalmente ao estudo dos exemplares malacológicos madeirenses da expedição de João Andrade e Corvo, em 1858),2 o clima intelectual era dominado pelas categorias classificatórias tradicionais, com total indiferença pela problemática evolucionista. Revelador da envergadura do desafio é um episódio narrado por Furtado, no rascunho de uma carta a Augusto Nobre (1865-1946), poucos meses depois de ter tomado posse: ‘bastará dizer-lhe que a minha entrada para esse estabelecimento ainda lá estava Parmacella valencienni com o nome de Testacella haliotidea, o que tanto irritou Morelet, e que fui eu que deitei pella janella fora exemplares indignos e etiquetas!’.3 Uma das principais críticas de Furtado é a manutenção de práticas metodológicas obsoletas que conduzem a conclusões erradas. Em dissonância com as práticas científicas da época, não se recorre à anatomia comparada como complemento do estudo da morfologia externa para efeitos de classificação. Já instalado em Lisboa, deixa este assunto bem claro, na sua primeira publicação, Sobre o logar que devem ocupar nas respectivas Familias os Molluscus nús (1886),4 na qual propõe uma nova classificação para a família Testacellidae, baseada nos carateres radulares: ‘a classificação dos moluscos está feita hoje, não em série única partindo dos de concha rudimentar ou simples a terminar nos de concha bem acabada, e não considerando senão a concha, mas sim em pequenas series de desenvolvimento paralelo em que se toma por base a anatomia profunda do animal; […] Hoje é a malacologia que se estuda, e não mera conchyliologia’. Com este comentário, Arruda Furtado chama a atenção para a necessidade de integração de conhecimentos e métodos: por um lado, o estudo anatómico comparado entre moluscos nus (sem concha) e moluscos com concha revela afinidades e/ou diferenças várias no que toca aos aparelhos reprodutor, digestivo, e respiratório, não podendo o critério da concha servir de elemento distintivo e hierarquizador do estado evolutivo; por seu turno, o estudo anatómico comparado, dentro de uma mesma família, neste caso dos pequenos dentes curvos quitinosos das lesmas de uma mesma família, permite ainda a divisão em sub-família.5 Conclui, por consequência, ‘que a concha, como caracter primário, só tem importância para a distinção das espécies’.

Esta ênfase nos critérios da anatomia comparada6 leva-o a desenvolver uma prática laboratorial de dissecação e descrição, que o colocam tecnicamente adiante de muitos malacologistas da sua época. Na falta de estojo de disseção apetrechado (com bisturi, pinças e facas curvilíneas), recorre a agulhas adaptadas, lancetas e pinças,7 e utiliza álcool, soluções de ácido pícrico ou crómico para a conservação dos tecidos moles. A observação é feita mediante o uso do microscópio. Não obstante, os desenhos de Arruda, muitas vezes numa escala muito pequena no seu primeiro esboço e depois aumentados por processo de quadrícula, parecem indicar que não dispõe de uma lupa binocular, utilizando apenas uma lente de aumento.8 Do mesmo modo, os métodos de observação da morfologia externa dos moluscos por ele utilizados transcendem os da conquiologia tradicional, uma vez que recorre a craveiras e instrumentos tecnicamente adaptados à realização de medidas. Por analogia com as medições antropométricas então em vigor, além da avaliação da espessura da concha, privilegia a medição dos seus diâmetros, ântero-posterior e umbono-marginal, analisando a relação entre os dois, bem como possíveis variações individuais.9

Pouco mais de um ano depois da sua chegada a Lisboa e alguns meses após a edição da nota sobre os moluscos nus, publica os resultados do seu trabalho na primeira parte de um Catálogo geral das colecções de Molluscos e conchas da secção zoológica do Museu de Lisboa (1886).10 Neste primeiro fascículo, apresenta o inventário das espécies da família Muricidae, existentes no Museu Nacional de Lisboa, incluindo notas sobre o estado de conservação e classificação de cada um dos perto de 300 exemplares (correspondentes a 14 géneros) inventariados, muitos deles provenientes da antiga coleção do Museu Real das Necessidades, na Politécnica desde 1863; das explorações a Angola de José de Anchieta (1832-1897)11 e de Friedrich Welwitsch (1806-1872);12 das recolhas na Madeira do 1º barão de Castelo de Paiva, António da Costa Paiva (1806-1879); bem como das múltiplas compras à famosa Maison Verreaux, efetuadas a partir da década de 1860, por Barbosa du Bocage.13 A entrada de Arruda Furtado no Museu de Lisboa coincide com o período de glória da instituição no que toca à expansão das coleções e à política de gestão e produção científica. As grandes viagens de exploração nos territórios ultramarinos africanos, organizadas pela recém-criada Sociedade de Geografia de Lisboa (1875), com o envolvimento direto de Barbosa du Bocage, então Ministro da Marinha e do Ultramar e dos Negócios Estrangeiros (1883-1886), proporcionam a Arruda Furtado abundante material malacológico inédito. É-lhe confiado o estudo e classificação de exemplares colhidos por Hermenegildo Capelo (1841-1917) e Roberto Ivens (1850-1898), na célebre travessia entre Angola e a costa do Índico (1884-1885). A lista sumária inclui 36 espécies terrestres e fluviais, na sua maioria com origem nos rios Luapula, Lifué, Dáqui e Zambese.14 Este trabalho resulta, em 1886, na publicação de um inventário dos moluscos terrestres e de água doce, sendo descritas cinco espécies novas, no Journal de Conchyoliologie, a revista especializada de referência na época.15 Em 1888, é dada à estampa, a título póstumo, uma nota sua sobre um Bulinus exaratus, Muller, colhido pelo naturalista Francisco Newton (1864-1909), na sua viagem exploratória a São Tomé, na qual Arruda Furtado descreve, minuciosamente, a rádula, bem como aspetos particulares da sua morfologia externa e interna.16

Em 1886, a Sociedade de Geografia de Lisboa, sob proposta do terceirense Augusto Ribeiro (1853-1913), inicia os preparativos de uma expedição científica aos Açores. Apesar de nunca concretizada, nela participaria Furtado, na qualidade de ajudante-naturalista e responsável pelas coleções malacológicas, por proposta do naturalista Fernando Mattoso Santos (1849-1921), então diretor interino da Secção Zoológica. Com partida prevista para a primavera de 1886, com duração programada de três meses, Arruda Furtado elabora o Programa de explorações malacológicas nos mares dos Açores.17 Neste minucioso projecto científico e operacional, estabelece 17 estações de dragagem, diferentes pontos em função da profundidade e da natureza das colheitas pretendidas, bem como missões em terra, em todas as ilhas. Lista, ao pormenor, o material para recolha, análise e transporte dos exemplares; os bens e pertences pessoais necessários à viagem; os livros, apontamentos e material de desenho, imprescindíveis à classificação dos exemplares, pois, como deixou escrito, ‘Conhecimento é classificarmos’.18

A par da revisão das coleções malacológicas do Museu, Furtado empreende ainda a arrumação das coleções em dois setores: uma coleção típica exposta ao público, contendo apenas exemplares representativos de cada género, e uma coleção geral, reservada e abarcando todo o acervo malacológico do Museu. Para a organização da coleção típica,19 socorre-se do recentíssimo trabalho de Paul-Henri Fischer (1835-1893), com ilustrações de Samuel Pickworth Woodward, Manuel de Conchyliologie et de Paleontologie Conchyliologique, obra monumental em 11 partes levada à estampa a partir de 1880 e ainda em publicação em 1886, contendo exemplares de todos os géneros e subgéneros, vivos e fósseis.20 Não obstante, os entraves à concretização deste trabalho no Museu seriam principalmente devidos à limitação permanente da verba orçamental, adiando-se, por exemplo, sem nunca se concretizar, a aquisição de mobiliário adequado à exposição de espécimes. Projeta, ainda, um Guia Popular21 para acompanhar esta coleção, nunca publicado devido à morte prematura do autor, cujo manuscrito se conserva no espólio à guarda do MUHNAC. A coleção típica, sem ser excessivamente numerosa, deveria, em seu entender, privilegiar a exposição de alguns exemplares de cada género porque ‘para o público em geral, a repetição de muitas formas semelhantes fatiga a vista e o espírito’. Do mesmo modo, o guia popular usa linguagem acessível, privilegiando nomes vulgares às designações e categorizações latinas. O desaparecimento precoce do jovem naturalista açoriano deixa incompleta a tarefa de reorganização e classificação das coleções, que será continuada pelo seu sucessor, Albert Girard (1860-1914).

Esta preocupação com a ‘vulgarização’ das ciências, em particular da malacologia, é uma constante no trabalho de Arruda Furtado, imbuído do espírito positivista do seu tempo, sobretudo depois da sua instalação em Lisboa. Multiplica artigos e notas de divulgação na imprensa, prepara manuais de ensino, esboça obras generalistas sobre história natural, zoologia e botânica, na qual o desenho e a representação gráfica — científica e artística — desempenham um papel fulcral na disponibilização e transmissão do conhecimento. Dos mais de 30 artigos do género publicados entre 1886 e 1887,22 destaca-se uma nota relativa à ostra portuguesa, saída na Revista Intelectual Contemporânea (1887), que ilustra os intentos divulgadores de Furtado. Sob pretexto de participar no debate sobre a ostra do Tejo, cuja comercialização estava prestes a ser proibida em França, devido à sua excessiva importação, que colocava em risco a própria sobrevivência ecológica das ostras das bacias francesas, Furtado descreve os caracteres conquiliológicos e anatómicos distintivos da ostra portuguesa: a concha mais robusta e a natureza hermafrodita são as razões da sua mais fácil reprodução.23

Em junho de 1887, Arruda Furtado falece, deixando um acervo substancial de manuscritos sobre os seus estudos malacológicos. A atualidade e originalidade, o rigor e diversidade, e, em certa medida, o pioneirismo, à escala nacional e internacional, fazem de Arruda Furtado uma figura de relevo da história da malacologia em Portugal.

Notas

1 A biblioteca do MUHNAC conserva várias separatas, assinadas e com dedicatórias manuscritas de Arruda Furtado, que foi remetendo para Lisboa, entre 1880 e 1886, sempre em duplicado, um dirigido pessoalmente a José Vicente Barbosa du Bocage, outro à biblioteca da Secção Zoológica.

2 José Vicente Barbosa du Bocage, ‘Noticia sobre uma colecção de conchas das Ilhas da Madeira e Porto-Santo, oferecidas ao Museu de Lisboa pelo Senhor João d' Andrade Corvo’, Annaes das Sciencias e Lettras, 1 (1857), 204-211.

3 MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Carta de Arruda Furtado para Augusto Nobre de 16 de outubro de 1886. Transcrita em Correspondência Científica…, 629-630.

4 Arruda Furtado, ‘Sobre o lugar que devem ocupar nas respectivas famílias os moluscos nus’, Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, 42 (1886), 88-94. Transcrito em Obra Científica de Francisco de Arruda Furtado, 113-120.

5 Arruda divide a família Testacellidae em duas sub-famílias: Testacellinae, com rádula sem dente central, e sub-família Glandininae, rádula com dente central.

6 Nos seus trabalhos e notas, Arruda Furtado regressa, com regularidade, ao tema da anatomia comparada para efeitos de classificação como elemento distintivo entre práticas tradicionais conquiológicas e práticas malacológicas modernas. Num apontamento, intitulado Do espírito fisiológico em conquiologia, escreve ‘Uns aumentam enormemente o número de géneros pelas mínimas particularidades de forma da concha, os outros só admitem os desmembramentos quando o requer a organização interna do animal. Este critério fornecido pela organização do animal parece o mais admissível’ [MUL-MUHNAC, AHML, Espólio Arruda Furtado, Notes d’Histoire Naturelle (sem data), F4]

7 MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Carta de Arruda Furtado para Louis C. Miall de 16 de junho de 1881. Transcrita em Correspondência Científica…, 89.

8 MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Desenho aumentado em quadrícula do aparelho digestivo de Helix Azorica, AF-4. Sobre este tópico, ver Luís P. Burnay, António M. Monteiro, op.cit, 52-53.

9 MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Applicação dos processos da anthropologia ao estudo das conchas (sem data), 5 fls.

10 Arruda Furtado, ‘Catálogo geral das colecções de moluscos e conchas da secção zoológica do Museu de Lisboa’, Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, 43 (1886), 105-150. Transcrito em Obra Científica de Francisco de Arruda Furtado, 121-164.

11 José Vicente Barbosa du Bocage, ‘José de Anchieta. Explorador de Angola’, Jornal das Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, 5 (1897).

12 Da vasta bibliografia sobre Welwtisch, ver Helmut Dolezal, Friedrich Welwitsch: vida e obra, Lisboa, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1974.

13 Veja-se as dezenas de listas de remessas e recibos de compra da Maison Verreaux, entre 1860 e 1890 [MUL-MUHNAC, AHMUL, AHMB]. Acerca de Bocage e dasua política museológica para o Museu Nacional de Lisboa, ver Catarina Madruga, José Vicente Barbosa du Bocage (1823-1907), a construção de uma persona científica, polic. da Tese de Mestrado em História e Filosofia da Ciência, Lisboa, Universidade de Lisboa, 2013.

14 ‘Conchas Terrestres e Fluviaes recolhidas durante a viagem depositadas na secção zoológica do museu de lisboa e o seu estudo confiado ao exmº sr. Arruda Furtado’, Hermenegildo Capello, Roberto Ivens, De Angola à Contra-Costa. Descrição de uma viagem através do continente africano, Vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1886.

15 Arruda Furtado, ‘Coquilles terrestres et fluviatiles de l'exploration africaine de MM. Capello et Ivens (1884-1885)’, Journal de Conchyliologie, 34 (1886), 138 – 152. Transcrito em Obra Científica de Francisco de Arruda Furtado, 163-176.

16 Arruda Furtado, ‘Sur le Bulimus exaratus, Müller’, Journal de Conchyliologie, 28 (1888), 5-10. Transcrito em Obra Científica de Francisco de Arruda Furtado, 195-204.

17 MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Programa de explorações malacológicas nos mares dos Açores (1885), AF – 7, 15 fls.

18 MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Guia popular da Collecção Typica de Molluscos da Secção Zoológica do Museu de Lisboa por Arruda Furtado (1885), F-34, fl. 3

19 Ver a descrição deste trabalho em Francisco Arruda Furtado, ‘Catálogo geral das colecções…’, 8-10.

20 Paul Fischer, Manuel de Conchyliologie et de Paleontologie Conchyliologique, Paris, Librairie Savy, 1887.

21 MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado, Guia popular da Collecção Typica de Molluscos….

22 Sobretudo nos periódicos O Jornal do Commercio e a Republica Federal. Ver Obra Científica de Francisco de Arruda Furtado.

23 Arruda Furtado, ‘A ostra portuguesa’, Revista Intelectual Contemporânea, 1 (1887), 97-98.