Botânica

Anatomia da flor do maracujá vulgar

Representação, efetuada ad nat., da anatomia da flor Passiflora edulis Sims. A técnica utilizada é grafite e guache.

Arruda Furtado e a Botânica

Apesar de ser conhecido principalmente pelos seus estudos na área da malacologia e da antropologia, Arruda Furtado não se limitou apenas a estudar estes domínios científicos, tendo também desenvolvido trabalho na área da botânica. O interesse por esta disciplina compreende-se se considerarmos a importância da flora açoriana, à época, na compreensão da origem das espécies insulares à luz da teoria evolucionista. Esta teoria, defendida por Arruda Furtado, referia que a colonização das ilhas oceânicas tinha sido consequência de migração à distância1 mediante o auxílio de múltiplos agentes, como as correntes oceânicas e as aves migradoras, contrapondo a teoria que alegava que todas as ilhas estiveram ligadas um dia ao continente mais próximo. De acordo com esta última teoria, os arquipélagos dos Açores, Madeira e Canárias constituíam restos de um grande continente que teria estado ligado à Europa Ocidental.

A influência exercida pelo seu professor de liceu Carlos Machado (1828-1901)2, a leitura da obra Origens das espécies de Charles Darwin, e o conhecimento de algumas características da flora açoriana — como a pobreza das espécies peculiares e a raridade de níveis alpinos existentes nos Açores referidas na obra do naturalista Hetwett Cottrell Watson (1804-1881)3 — terão contribuído para aumentar o interesse de Arruda Furtado em aprofundar o conhecimento sobre a flora daquele arquipélago, de modo a contribuir para a compreensão da sua origem e para a validação da teoria evolucionista de Darwin.

Anatomia da flor da passiflora

Representação, efetuada ad nat., da anatomia da flor Passiflora edulis Sims. A técnica utilizada é grafite e guache.

Neste sentido, e sabendo da importância do local em que vivia para o estudo da especiação evolutiva, Arruda Furtado toma a iniciativa, em 1881, de escrever a Darwin a solicitar orientação e a oferecer os seus préstimos para efectuar observações sobre o transporte dos seres vivos pelas correntes marítimas. Na resposta de agradecimento, Darwin propõe vários pontos de investigação na área da botânica, nomeadamente: i) o estudo das plantas nas ilhas, sobretudos nas que se localizam no extremo do arquipélago com posterior comparação da flora entre ilhas; ii) a colheita de espécimes nas zonas mais altas das ilhas; iii) a análise do conteúdo do tubo digestivo das aves migratórias, com ensaio de germinação das sementes eventualmente encontradas de modo a identificar as espécies; iv) o exame das raízes de árvores arrastadas por correntes para pesquisa de diásporos, e a sua eventual germinação; , bem como o exame de detritos acumulados.

Com o objectivo de cumprir alguns destes objetivos, Arruda Furtado efetua, em 1881, duas excursões botânicas na ilha de S. Miguel, na Serra Gorda e no Pico da Cruz, localizadas a 480m e 384m de altitude, respectivamente. Embora a altitude dos locais estudados tenha sido julgada insuficiente por Darwin, desconhece-se a existência de outras excursões de Arruda a locais mais altos. Destas saídas de campo resultaram dois herbários que foram remetidos, por sugestão de Darwin, para Joseph Dalton Hooker (1817-1911), então diretor do Royal Botanical Garden de Kew, que por sua vez os confiou a John Gilbert Baker (1834-1920), reconhecido botânico e especialista do género Selaginella, para que os identificasse. Deste estudo resultou uma lista de 38 espécies (32 angiospérmicas, 5 pteridófitos e 1 briófito) que nunca foi publicada, com exceção de Selaginella azorica Bak., espécie nova para a ciência descrita por Baker, com base também em espécimes vivos enviados por Arruda Furtado a William Turner Thilselton Dyer (1843-1928), que na época desempenhava a função de auxiliar do diretor do Royal Botanical Garden de Kew.

Gramíneas de São Miguel (Açores)

Representações de diferentes espécies de gramíneas da família Poaceae (R.Br.) Barnh.).

A troca de correspondência e o envio de espécimes para Kew manteve-se até 1884. Entre os espécimes enviados constam, entre outros, sementes de ‘fava-do-mar’4, impressões de folhas fósseis5, duas delas identificadas em Kew como pertencentes às famílias Lauraceae e Notelaea, e uma fotografia de uma couve comum com uma anomalia, na qual a folha aparece invertida relativamente ao pecíolo. Segundo Dyer que analisou a fotografia, este tipo de crescimento anómalo não era raro em alfaces tendo sido inclusivamente referenciado por Maxwell Master (1833-1907), na sua obra intitulada Vegetable Teratology (1869). Esta fotografia foi ainda remetida por Arruda Furtado para o biólogo Louis Campton Miall (1842-1921)6 com quem se correspondia.

Relativamente às outras pesquisas sugeridas por Darwin, sabe-se que Arruda Furtado iniciou ainda algumas sobre os conteúdos digestivos das aves, mas que não tiveram seguimento. Em relação à sugestão de Hooker a Darwin para que Arruda Furtado investigasse os bosques extintos de ciprestes(Cupressus)7 dos Açores, também não existem desenvolvimentos conhecidos, com excepção da colheita de folhas fósseis, que Arruda Furtado enviou para Kew. A justificação deve-se, conforme refere, ao facto de não ter encontrado mais nenhum registo fóssil durante a expedição realizada à localidade de Mosteiros, como atesta a carta que enviou a Darwin em novembro de 18818.

Anomalia na folha de couve

Fotografia de uma anomalia ocorrida na folha de couve, em que aparece invertida em relação ao pecíolo. Este exemplar foi encontrado por António Andrade e comunicada por Francisco de Arruda Furtado ao jardim de Kew.

O interesse e importância da botânica na avaliação das leis de especiação nunca deixaram de ocupar as preocupações científicas de Arruda Furtado, apesar de nunca ter publicado resultados das suas investigações florísticas. Cerca de 1883-1884, Arruda Furtado terá pensado em publicar um trabalho Sobre a fauna e a flora nos Açores9. Neste texto inacabado e que permaneceu inédito, procurava comparar a fauna e a flora insulares dos arquipélagos dos Açores, Madeira, Canárias e Cabo-Verde, numa tentativa de identificação de características comuns. A análise assenta no estudo das plantas, insectos e moluscos terrestres, considerados como os organismos insulares mais apropriados para esclarecer as questões relativas à colonização, como se pode ler no referido manuscrito: ‘Os arquipélagos acima mencionados têm sido estudados e comparados entre si na sua flora, nos seus insectos e nas suas conchas terrestre, e são estes os ramos da biologia mais próprios para esclarecerem o problema da sua colonização’.

Não se conhecem investigações botânica posteriores a 1885, embora já em Lisboa, Arruda Furtado mencione, numa carta, uma excursão que efetuou à Serra de Monsanto, mas apenas refere a recolha de espécimes malacológicos10.

<em>Lupinus</em> L.

Representação de um exemplar do género Lupinus L. através dos seus detalhes morfológicos.

Notas

1 Esta teoria foi baseada em determinados factos conhecidos na época como o menor número de espécies em relação aos continentes, das quais muitas endémicas, a ausência de ordens inteiras como anfíbios e mamíferos terrestres e as proporções de certas ordens de plantas.

2 Carlos Machado terá tido conhecimento da teoria da evolução de Darwin através de Júlio Henriques durante a sua estadia em Portugal continental.

3 Hewett Cottrell Watson (1804-1881) foi um botânico Inglês, evolucionista, que desempenhou uma função muito importante na exploração botânica açoriana. Por indicação de J. Hooker, diretor dos Kew Gardens de Londres, viajou a bordo do navio de guerra britânico HMS Styx, tendo, em 1842, passado três meses nos Açores onde colheu mais de 300 espécies espécimes nas ilhas do Faial, Pico, Flores e Corvo.

4 Estas sementes, segundo C. Tavares, no artigo de 1957 intitulado ‘Quatro cartas inéditas de Charles Darwin para Francisco d’Arruda Furtado’, corresponderiam provavelmente a Entada gigas (L.) Fawc. & Rendle, e outras de diferentes espécies, teriam sido arrastadas para os Açores pelas correntes marítimas. As de E. gigas nunca germinam nos Açores; porém, as que foram enviadas por A. Furtado para Kew germinaram com sucesso.

5 Dezasseis exemplares, recolhidos no Pico de Mafra, em S. Miguel, foram depois remetidos por M.T. Dyer para o British Museum.

6 Professor de Biologia no Yorkshire College e curador do Museum of the Literary and Philosophical Society of Leeds, ofereceu a Arruda Furtado materiais de desenho e ajudou-o na publicação de alguns estudos. A correspondência com Arruda Furtado iniciou-se em 1880 por sugestão de um colega T. E. Thorpes, Professor no Yorkshire College, que, de passagem por S. Miguel, conhecera Arruda Furtado.

Evolução da pétala da camélia

Estudo, efetuado ad nat., da evolução da pétala do género Camellia, pela sépala e pelo estame.

7 Cupressus que de acordo com C. Tavares, no artigo de 1957 supracitado deverão tratar-se de Juniperus brevifolia, denominados vulgarmente nos Açores como ‘cedros.’

8 Correspondência Científica de Francisco de Arruda Furtado, Introdução, levantamento e estudo de Luís M. Arruda, Prefácio de José Guilherme Reis Leite, Ponta Delgada, Instituto Cultural, 2002, pp. 117.

9 MUL-MUHNAC, AHMUL, Espólio Arruda Furtado Sobre a fauna e a flora nos Açores.

10 Correspondência Científica de Francisco de Arruda Furtado, Introdução, levantamento e estudo de Luís M. Arruda, Prefácio de José Guilherme Reis Leite, Ponta Delgada: Instituto Cultural, 2002, pp. 556.