Um museu vivo
Um museu vivo: S. Miguel e os micaelenses
Se no domínio do estudo dos insetos e depois dos moluscos terrestres, os trabalhos de Arruda Furtado se concentram no arquipélago dos Açores ― uma vez que as ilhas são espaços naturalmente limitados cujo relativo isolamento facilita e permite extrapolar para o passado com maior segurança ― também no campo da antropologia se dedica à análise do povo açoriano, concretamente da população da ilha de S. Miguel.1 Destas investigações resulta, em 1884, um estudo intitulado Materiais para o Estudo Antropológico dos Povos Açorianos. Observações sobre o Povo Micaelense,2 do qual existem em arquivo diversas notas e versões manuscritas.
Neste trabalho, Arruda Furtado procede a uma comparação dos dados recolhidos em S. Miguel com os existentes sobre a população continental, com o fim de clarificar o processo de ‘diferenciação antropológica’ ocorrido no povo daquela ilha, tendo em conta a geologia, o meio e o clima, as características físicas da população e o modo como vive, sente e pensa.3
O povoamento dos Açores, embora coincidente com as Descobertas, período em que o povo português estivera exposto a outras culturas, experimentando profundas alterações na mentalidade e hábitos de vida, não terá bafejado os açorianos do mesmo modo. Após a colonização, os ilhéus mantiveram-se isolados, entorpecidos pela benignidade do clima, ― ‘the Azorean torpor’4― e à mercê da violência de erupções vulcânicas e do poder discricionário dos donatários.5 Arruda Furtado constata, no entanto, que desde há cinco décadas, os Açores estão em contacto direto e regular com diversos países europeus, tornando premente uma investigação sobre a sua população e costumes, agora em vias de mudarem por influência externa. Por não ter partilhado das vivências proporcionadas pela Expansão, o povo açoriano, e especialmente o de S. Miguel, por vezes qualificado como ‘o povo mais bruto de todas ilhas’,6 emerge na sua obra não como um fim em si, mas como um instrumento de análise antropológica do povo português no seu todo, inscrevendo-se os seus estudos, por esse facto, no programa de investigação de Teófilo Braga.
O interesse antropológico destes ilhéus, maioritariamente agricultores, deriva de terem preservado características antropométricas e culturais como a força física e a ‘ignorância profundíssima’ que, no continente, se teriam diluído pelos intercâmbios com o exterior, ao longo de séculos.7 Assim, o recurso à obscenidade, a pobreza de expressão patente na poesia popular, a seu ver pouco imaginativa, e em danças e cantares monótonos, bem como o gosto duvidoso reinante na arquitetura de edifícios públicos ao qual nem as igrejas parecem escapar, refletiriam, apesar da enganadora proliferação de jornais,8 um desprezo básico pela educação e pela leitura, aliás também presente na quase iliteracia da ‘maior parte dos nossos morgados’.9
No plano físico, estas características manifestar-se-iam nos micaelenses na ‘expressão e incorreção do seu tipo fisionómico, e pela pouca elevação da circunferência craniana’,10 constituindo-se S. Miguel, a sua população e a cultura local numa espécie de museu de características físicas, costumes e tradições, há muito desaparecidos entre a população do continente que lhes terá dado origem.
No entanto, coloca-se a este projeto uma questão de fundo que é a da heterogeneidade da origem, uma vez que os micaelenses não descendiam exclusivamente da população de uma só região do continente, mas de colonos originários de diversos lugares, o que se manifestava na sua fala, composta de vocábulos e expressões de proveniência variada, bem como na toponímia de S. Miguel. É em torno da questão da diversidade da origem étnica e antropológica dos açorianos, especialmente dos micaelenses, que Arruda Furtado se corresponde com Teófilo Braga, Adolfo Coelho e José Leite de Vasconcelos (1858–1941).11 Discute com eles dados e interpretações longe de serem consensuais, sendo a sua interpretação da origem do povo micaelense distinta, com Teófilo Braga a favorecer o norte de Portugal, especialmente o Minho, e Adolfo Coelho a apontar semelhanças fonológicas com o sul; ao invés, o naturalista açoriano privilegia os dados da antropologia física, de modo a ultrapassar os limites decorrentes da abordagem histórica.
A escassez de documentação referente à descoberta e povoamento dos Açores, especialmente relativa às regiões do continente de que o povo micaelense descenderia, impossibilitaria a fundamentação por via histórica de um estudo comparativo entre a população do continente e a das ilhas, uma vez que não se poderia determinar, com certeza, nem as semelhanças físicas e culturais dos ilhéus com a população do continente, nem as diferenças devidas à influência do meio. Arruda Furtado contorna este problema partindo da hipótese de que a linguística e a antropologia revelariam semelhanças profundas ao nível da pronúncia, do vocabulário, das tradições e dos atributos físicos entre os açorianos e os seus ascendentes continentais. A sua abordagem remete, assim, para uma análise estrutural das características físicas externas, procurando, através da comparação, elementos comuns entre micaelenses e açorianos, e entre estes e os continentais, que permitiriam a sua integração em tipos, à maneira da anatomia comparada,12 cujos métodos tão bem conhece.
Conclui que a população micaelense possui um conjunto de traços que a distingue da restante população açoriana, predominando características atribuíveis aos celtas, dada a incidência do tipo braquicéfalo. Na base destas conclusões está a comparação, na senda de Broca, Le Bon e Topinard, de medidas craniológicas, da estatura, da forma do rosto e do nariz, da cor dos olhos, cabelos e barba, efetuadas em 100 camponeses de S. Miguel e em igual número de indivíduos, a residir em Lisboa. Os últimos eram oriundos do norte e centro do país, especialmente do Minho, escrutinados graças à colaboração de um conterrâneo, o arqueólogo e antropólogo Francisco de Paula e Oliveira (1851–1888). À maneira de Gustave Le Bon, que correlaciona a dimensão craniana com o nível de inteligência, a antropometria é para Arruda Furtado o caminho para chegar ao que designa por ‘constituição mental do povo micaelense’. No entanto, adverte que, individualmente, um crânio de maiores dimensões não é sinónimo de maior inteligência; quando não, Léon Gambetta (1838–1882), o famoso estadista francês, invalidaria a correlação, dada a dimensão reduzida do seu crânio, quando comparada com a da restante população a que pertence.13 A seu ver, esta correlação só é válida no plano estatístico: uma população que apresentasse um número considerável de crânios volumosos indiciaria uma maior inteligência, permitindo, como faz Le Bon, distinguir entre raças superiores e inferiores.14
A homogeneidade encontrada por Arruda Furtado nos dados físicos obtidos em Lisboa leva-o à conclusão de que a raça portuguesa é fisicamente homogénea, legitimando a comparação com as observações registadas em S. Miguel. Verifica-se entre a população continental e a micaelense diferenças substantivas que a individualizam: no continente, predomina o tipo dolicocéfalo; em S. Miguel, abundam os cabelos claros e os olhos verdes, a estatura é mais baixa, mas o traço distintivo mais importante é a forma do crânio, dominando os tipos sub-braquicéfalo, mesatocéfalo e subdolicocéfalo, consistentes com o baixo nível intelectual e com a suposta ascendência céltica dos micaelenses. Arruda Furtado avança com a hipótese de S. Miguel ter sido povoada por Bretões, até porque existe ali uma região denominada Bretanha, onde as habitações apresentam características distintas do resto da ilha. A pronúncia nasalada, além do mais, e a acentuação do u, entoado à francesa, concorreriam para a plausibilidade desta hipótese.15
1 Luís M. Arruda, ‘Evolucionismo e Biogeografia na Obra Científica de Francisco Arruda Furtado e seu Contributo para o Conhecimento Científico das Ilhas dos Açores’, in Alberto Vieira, coord., As Ilhas e a Ciência. História das Ciências e das Técnicas. I Seminário Internacional, Funchal, Secretaria Regional do Turismo e Cultura e Centro de Estudos de História do Atlântico, 2005, pp. 265–275.
2 Francisco de Arruda Furtado, Materiais para o Estudo Antropológico dos Povos Açorianos. Observações sobre o Povo Micaelense, Ponta Delgada, Tip. Popular, 1884, p. 2.
3 A. Furtado, Materiais.
4 Expressão devida ao médico britânico Joseph Bullar (1808-1869), conforme citado por Arruda Furtado, em Materiais, p.19. Os irmãos, Joseph and Henry Bullar, visitaram os Açores, em 1838, tendo publicado, em 1841, um livro intitulado A Winter in the Azores and a Summer at the Baths of the Furnas.
5 A. Furtado, Materiais, p. 24.
6 A. Furtado, Materiais, p. 25.
7 A. Furtado, Materiais, p. 23
8 A. Furtado considera destituído de significado o grande número de jornais açorianos porquanto a sua existência se deveria ao ‘estado da nossa política’. Arruda Furtado, Materiais, p. 30.
9 A. Furtado, Materiais, p. 31.
10 A. Furtado, Materiais, p.70.
11 Ver correspondência com Teófilo Braga, Adolfo Coelho e José Leite de Vasconcelos em Correspondência Científica de Francisco de Arruda Furtado, Introdução, levantamento e notas de Luís M. Arruda, Ponta Delgada, Instituto Cultural, 2002, respetivamente pp. 427– 445; 403– 426; 455– 470.
12 Embora a anatomia comparada defina tipos com base na comparação de estruturas anatómicas internas.
13 Francisco de Arruda Furtado, ‘A Inteligência e o Tamanho da Cabeça. A Inteligência da Mulher e a do Homem’, A Época, 81, (21 de julho de 1883), 4pp., 1.
14 A. Furtado, Materiais, pp. 49–50.
15 A. Furtado, Materiais , pp. 74–76.