Antropologia e género

Textos preparat&oacute;rios do estudo:&nbsp;<em>Materiais para o estudo antropol&oacute;gico dos povos a&ccedil;orianos: observa&ccedil;&otilde;es sobre o povo Micaelense</em>

Manuscrito, contendo gráfico comparativo de medidas da circunferência craniana da população micaelense com outras populações, correspondendo a curva inferior às camponesas micaelenses.

Antropologia e género: as micaelenses e a inferioridade intelectual das mulheres

O estudo antropológico realizado na ilha de S. Miguel, especificamente das mulheres, é utilizado por Arruda Furtado com uma outra finalidade, a de corroborar as conclusões de Le Bon sobre os géneros1 e reforçar os argumentos biológicos e craniométricos presentes no discurso de diversos médicos, cientistas e autores franceses, ingleses e americanos,2 visando demonstrar a inferioridade intelectual das mulheres.3 A mulher, ‘doente em cada mês e em cada período de nove meses’, como diria o historiador e filósofo Jules Michelet (1798–1874), é intelectualmente inferior, sendo ‘a questão biológica o grande argumento contra a possibilidade de instruir superiormente a mulher’, segundo Arruda Furtado.4 A realidade, no entanto, caminha teimosamente em sentido contrário, em Portugal e no estrangeiro.

Em França, as mulheres acedem ao ensino superior pela primeira vez a partir de 1866, graças ao químico Charles-Adolphe Wurtz (1817–1884), então deão da Faculdade de Medicina, ficando criado um precedente para um processo difícil, mas imparável.5 Em Portugal, Elisa Andrade matricula-se na Escola Politécnica de Lisboa, no ano letivo de 1880–1881 e, até 1911, mais três dezenas de estudantes do sexo feminino se lhe seguem,6 ignorando os argumentos científicos de distintos médicos, naturalistas e antropólogos de que estariam a incorrer em sérios riscos, ao ultrapassarem os limites que a natureza lhes teria imposto. Para Arruda Furtado, a educação superior deformaria as mulheres a ponto de perderem os atributos conferidos à feminilidade, comprometendo a sua função reprodutora; e nem mesmo as mãos das mais hábeis costureiras poderiam ‘dissimular a falta de órgãos necessários para a beleza e a maternidade’ que a instrução superior teria, entretanto, atrofiado.7 Existiria, por conseguinte, um determinismo biológico e antropológico incontornável que justificaria o ‘abismo intelectual entre homens e mulheres’, a seu ver necessário. A aceitação dos termos dessa necessidade, além do mais, é para o naturalista açoriano um critério de aferição civilizacional: ‘quanto mais superior é a raça e avançada a civilização’ mais o homem estaria ‘fatalmente condenado a ser cada vez mais homem e a mulher cada vez mais mulher’.8

Anne-Louise Germaine Necker, baronesa de Staël-Holstein (1766 -1817), conhecida como Madame de Staël

Exceções que Arruda Furtado considerava confirmarem a regra da inferioridade intelectual das mulheres: I. Madame de Staël (1766–1817), escritora que Auguste Comte incluíra no seu Calendrier Positiviste (calendário de homens notáveis).

Embora os métodos e as conceções antropológicas de Arruda Furtado estejam ultrapassados pela insustentabilidade das convicções em que assentam, o seu trabalho é representativo das orientações ideológicas que caracterizaram a prática antropológica europeia e nacional da sua época, marcadas pelo racismo e o sexismo, patente em publicações especializadas e obras de divulgação, parte integrante do proselitismo científico sentido como um dever do cientista. A nível local, enquadram-se na agenda política republicana nas suas diversas cambiantes, informada pelo positivismo, historicismo, biologismo e materialismo, com o intuito de suster um alegado declínio rácico e promover a transformação social, através da instrução e do melhoramento da raça (eugenia), de que as Conferências do Casino e o movimento intelectual protagonizado pela Geração de 70 são referência obrigatória.

Clémence Royer (1830–1902), fotografada aos 35 anos por Nadar.

Exceções que Arruda Furtado considerava confirmarem a regra da inferioridade intelectual das mulheres: II. Clémence Royer (1830–1902), tradutora para francês de On the Origin of Species, de Charles Darwin.

Notas

1 Gustave Le Bon, ‘Recherches Expérimentales sur les Variations sur le Volume du Cerveau et du Crâne’, Bulletin de la Société d’Anthropologie , 1 (1878), 310-315 ; ‘Recherches Anatomiques et Mathématiques sur les Lois de Variation du Volume du Cerveau et sur les Relations avec l’Intelligence’ , Revue d’Anthropologie, 2(1879), 27–104.

2 Sandra Harding, Whose Science? Whose Knowledge? Thinking from Women’s Lives , Cornell, Cornell University Press, 1991.

3 A. Furtado, ‘A Inteligência’.

4 Francisco de Arruda Furtado, ‘Instrução Superior: A Instrução Superior da Mulher’, Jornal do Commercio, nº 9857, (8 de outubro 1886), 6, 1.

5 Natalie Pigeard-Micault, Charles-Adolphe Wurtz. Un Savant dans la Tourmente, entre Bouleversements Politiques et Revendications Féministes , Paris, Hermann, 2011, pp.63–81.

6 A maior parte concluiu, posteriormente, o curso de Medicina ou de Farmácia na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e militou nas organizações feministas republicanas, nomeadamente, em prol do sufrágio feminino. Ana Simões, Ana Carneiro, Maria Paula Diogo, Luís Miguel Carolino, Teresa Salomé Mota, Uma História da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (1911–1974), Lisboa, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, 2013, pp. 131–134.

7 A. Furtado, ‘Instrução’, citando um Dr. Clark, 3. Trata-se, possivelmente, de Edward Hammond Clarke, médico, professor em Harvard, autor de Sex in Education, or, A Fair Chance for the Girls. Boston, J. Osgood and Company, 1873.

8 A. Furtado, ‘A Inteligência’, 3.