Incursão antropológica
Incursão antropológica e uma maré cheia de problemas
Os trabalhos de Arruda Furtado na ilha de S. Miguel passam a incluir, a partir de 1882, a antropologia. O Catálogo da Exposição de Artes, Sciencias e Letras Michaelenses, já referido, abre com um texto que terá sido inspirado pela perspetiva antropológica de Furtado, senão mesmo saído da sua pena. Nele se explica que se pretende dar conta ao público do progresso local, mas também patentear ‘o interesse especial que tomamos pela arte popular em todas as suas manifestações e detalhes’, dadas as condições particulares do meio açoriano. Este interesse pela genuinidade popular, justificada pelo contacto mais próximo do povo com a natureza e, por isso, ‘menos facilmente desviado na sua evolução pela influência de meios estranhos’,1 já anuncia o olhar darwiniano com que Arruda Furtado passa a observar os seres humanos, estimulado pela condição insular da sociedade de que faz parte.
O facto de o seu expositor no certame ter acolhido os trabalhos de tecelagem e costura das camponesas da Bretanha e dos Arrifes, bem como as colchas artesanais da Ribeirinha e Ribeira Grande evidencia o processo em curso de observação e de reflexão antropológicas. No mesmo expositor, como que sublinhando a modernidade intelectual deste novo modo de relação com o povo, Arruda Furtado expõe as suas publicações científicas, as Odes Modernas de Antero de Quental e os Cantos Populares dos Açores de Teófilo Braga.
Se dúvidas existissem, a sua correspondência torna claro o que, por esta altura, lhe ocupa a mente inquieta. Encerrada a Exposição, no dia 28 do mesmo mês de maio já está a escrever a um dos mais prestigiados antropólogos da época, Gustave Le Bon (1841-1931), de quem já lera L’homme et les sociétes, publicado no ano anterior.2 Na urgência de conhecimentos e colaborações credenciadas, corresponde-se também com Adolfo Coelho (1847-1919), José Leite de Vasconcelos (1858-1941) e Teófilo Braga. O objetivo é ‘agarrar o mecanismo da transformação’,3 pelo qual ambiciona compreender como se gerara o povo açoriano, no processo de diferenciação dos primeiros colonizadores das ilhas: ‘Eis o que explica a minha febre.’
Passados dois anos de intenso trabalho, sai dos prelos Materiais para o estudo antropológico dos povos açorianos. Observações sobre o povo micaelense, uma obra que, para além de documentar uma corrente da antropologia, dominante até ao princípio do século xx, foi a primeira em Portugal a utilizar a fotografia nesta disciplina, na fixação mecanicamente realista das expressões faciais.4
Em 1883, aporta a S. Miguel a expedição francesa Talisman, proporcionando a Arruda Furtado o contacto direto com zoólogos de renome, como Alphonse Milne-Edwards (1835-1900) e Edmond Perrier (1844-1921). É da sua lavra um dos raros registos da troca de impressões e das ofertas durante a visita ao museu: ‘o Sr. Milne-Edwards fez generosamente uma doação de uma bela coleção de mamíferos e de aves proveniente dos exemplares repetidos do Muséum de Paris’.5
O museu, que não deixa de suscitar o interesse dos naturalistas que o visitam, vive, em 1884, um momento crítico. Por motivos de política local, regista-se no Liceu uma tentativa de reformar compulsoriamente Carlos Machado, quando ficou doente durante algum tempo.6 O impedimento do fundador e diretor de ter acesso ao museu, bem como a animosidade que, entretanto, o estudo antropológico de Arruda Furtado provocara em Ponta Delgada, põem em perigo o trabalho de ambos de quase uma década. ‘Municipalizar’ o museu é a solução que garantirá o futuro.7
Este é, no entanto, apenas um dos episódios que marcam negativamente esse ano de 1884 para Arruda Furtado. A ilha de S. Miguel e, principalmente, os círculos instruídos e políticos de Ponta Delgada recebem mal o estudo antropológico que, em última análise, coloca o povo micaelense num estádio de evolução bastante primitivo. As elites sociais que se movimentam há décadas, para fazer valer politicamente a distinção empreendedora e produtiva da ilha, vêem no estudo um inesperado adversário deste desiderato.
Agravadas por esta questão ou não, as relações entre Arruda Furtado e o seu distinto empregador também azedam. Apesar da distância social entre ambos, havia no início da relação laboral alguma admiração mútua. Essa circunstância pode explicar, por exemplo, o acesso de Furtado ao Jardim José do Canto, onde ocasionalmente realiza trabalhos de campo.8 Problemas de saúde mal compreendidos por José do Canto e, finalmente, em outubro de 1884, uma desconfiança quanto à sua honestidade, provocam o confronto e o subsequente despedimento. O episódio leva à publicação do folheto A minha saída da casa do sr. José do Canto, que narra os pormenores da rutura. Sem trabalho e sem rendimentos, mas apoiado financeiramente pelo farmacêutico e jornalista Francisco Maria Supico (1830-1911),9 Arruda Furtado segue a sua vocação, rumo a Lisboa. Em dezembro, já se refere ao museu de Ponta Delgada como ‘este gabinete que eu lamento vivamente ter deixado para trás’,10 pelo que é de supor que tenha partido ainda em 1884 – um ano em que a ilha de S. Miguel se tornou, de repente, demasiado pequena e hostil.
Notas
1 Catalogo da Exposição de Artes, Sciencias e Letras Michaelenses inaugurada nas salas do Lyceu Nacional de Ponta Delgada no dia 7 de maio de 1882, Ponta Delgada: Typographia Imparcial, 1882, p. 8.
2 Correspondência Científica, Correspondência trocada entre A. Furtado e Gustave Le Bon, pp. 342-358.
3 Correspondência Científica, Carta de A. Furtado a A. Coelho de 18 de outubro de 1882, p. 404.
4 António Sena, História da Imagem Fotográfica em Portugal, 1839-1997, Porto: Porto Editora, 1998, p. 100.
5 Francisco de Arruda Furtado, ‘ Revue scientifique – Les Açores au [ sic , du] point de vue scientifique’, Gazette française du Portugal, 2 (1884), in Obra Científica , p. 493.
6 Carlos Maria Gomes Machado era o n.º 2 do Partido Regenerador em S. Miguel.
7 A estratégia de municipalizar o museu foi desenvolvida por Afonso Chaves, futuro diretor da instituição. Cf. Conceição Tavares, Albert I do Mónaco, Afonso Chaves e a Meteorologia nos Açores, Ponta Delgada: Sociedade Afonso Chaves e CIUHCT, 2009, pp. 165-167.
8 AHMUL– MUHNAC, Fundo Arruda Furtado, Histoire naturelle. Croquis et notes devant nature, AF-4 – um dos locais identificados das excursões naturalistas é o Jardim José do Canto. Embora se possa especular sobre o eventual acesso de Arruda Furtado à bem provida biblioteca de José do Canto, não existem indícios claros de que tal se verificasse e a distância social entre ambos dificilmente contempla a possibilidade de uma relação de cumplicidade intelectual.
9 Francisco Maria Supico, Enciclopédia Açoriana, Centro de Conhecimento dos Açores, Direcção Regional da Cultura, http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/default.aspx?id=10282
10 Francisco de Arruda Furtado, ‘ Revue scientifique – Les Açores au [ sic , du] point de vue scientifique’, Gazette française du Portugal, 2 (1884), in Obra Científica , p. 493.