Dias felizes

<em>Helix inchoata</em> (Morelet, 1845)

Datado de 9 de fevereiro, de 1885, este estudo demonstra que, enquanto esteve sem trabalho em Lisboa, Arruda Furtado se manteve focado na malacologia.

Dias felizes e fim da jornada

No início de 1885, o zoólogo Barbosa du Bocage movimenta-se para integrar Arruda Furtado no museu da Escola Politécnica. Não deixando de ser um gesto de proteção, certamente incentivado por uma eventual recomendação de Carlos Machado ou de Ernesto do Canto (1831-1900),1 o objetivo de Bocage é aproveitar os conhecimentos e a experiência de Furtado nos domínios da malacologia e da conquiologia. ‘Pelos seus bem conhecidos estudos sobre a fauna malacológica dos Açores, torna-se tão recomendável o aproveitamento dos serviços que nos pode prestar…’,2 que a sua contratação é aprovada pelo Ministro, tendo em vista a urgente revisão e catalogação conquiológica do museu.

A 1 de março Furtado escreve a Supico, para lhe comunicar a sua nomeação como adido ao Museu de Zoologia de Lisboa. O lugar é precário e mal pago, mas Furtado, felicíssimo, confia nos seus conhecimentos e competência: ‘As coleções são já suficientemente vastas para que se possa fazer alguma coisa que chame a atenção e me possa fazer suprir, com os títulos dos trabalhos práticos, a falta de outros que não possuo’.3 Publicar é a sua mais premente intenção: artigos científicos, para se afirmar profissionalmente, e artigos de divulgação, na imprensa generalista, para conseguir proventos adicionais e continuar a militância positivista de aperfeiçoamento da sociedade pela difusão das ciências. Um dos pedidos que faz a Supico é, precisamente, que lhe faculte contactos na imprensa, em Portugal e no Brasil, e que recomende o seu trabalho junto dos proprietários dos jornais.

Entretanto, desenvolve projetos de maior fôlego, como uma História da Zoologia em Portugal,4 cujo plano de desenvolvimento envia para apreciação crítica a Carlos Machado. O ascendente intelectual do velho mestre é ainda evidente: ‘Peço-lhe me diga francamente os pontos em que porventura possa discordar, por falta de ordem rigorosa ou deficiência’.5 No plano da obra, há um capítulo dedicado a “Organização de explorações e museus”, no qual Arruda Furtado prevê incluir matérias relativas ao museu de Ponta Delgada e aos trabalhos lá deixados inconclusos com a saída para Lisboa: ‘Escusado de dizer-lhe que o seu (nosso) Museu me não esqueceu ao traçar o meu plano, mas devo primeiro consultar o meu Amigo sobre o lugar em que ele mais rigorosamente tem de ir’.6 Tudo indica que os Açores, com as suas potencialidades científicas para o estudo da evolução, continuam a ser um assunto adiado e não, propriamente, uma página virada. É assim que, no contexto de uma planeada exploração científica aos Açores, surgida no seio da Sociedade de Geografia de Lisboa, Furtado elabora um minucioso Programa de explorações malacológicas nos mares dos Açores.7 Trata-se de um programa científico e operacional detalhado, que estabelece 17 estações de dragagem, diferentes zonas em função da profundidade e, por consequência, das colheitas pretendidas, e missões em terra em todas as ilhas, incluindo os ilhéus das Formigas. Ao todo, com partida e regresso a Lisboa, a expedição duraria 3 meses, na qual Arruda Furtado chega a ser integrado: ‘(…) foi naturalmente com muita satisfação e entusiasmo que recebi a notícia de que se projectava uma exploração conveniente aos Açores e sobretudo a que me comunicou o próprio Sr. Dr. Mattoso Santos de que me havia indicado para seu companheiro na exploração zoológica que lhe estava incumbida, com o que sobremodo me julgo honrado’.8

Programa de explorações malacológicas nos mares dos Açores

Folha de rosto do Programa de explorações malacológicas nos mares dos Açores.

Quando é contratado para o museu de Lisboa, Arruda Furtado está há quatro meses sem qualquer rendimento. Tem dívidas acumuladas e enfrenta grandes dificuldades, mas não deixa de pensar no compromisso assumido ainda em S. Miguel: casar com Adelina, mal conseguisse colocação. E cumpre. Adelina da Costa, a namorada micaelense, filha de João Joaquim da Costa Senior, farmacêutico em Ponta Delgada, casa-se com Francisco de Arruda Furtado, por procuração, na Matriz de São Sebastião, no dia 27 de abril de 1885.9 As dificuldades económicas não obstam à felicidade do reencontro em Lisboa, apenas ensombrada por doença inesperada de Adelina. Respondendo pouco tempo depois a Henrique Maria de Aguiar (1866-1933), conterrâneo e amigo a estudar na Universidade de Coimbra, Furtado agradece as felicitações pelo casamento e dá-lhe conta da aflição passada: ‘Felizmente passou e temos feito já belas excursões. Domingo fomos, com meu irmão também, bater durante 6 horas a Serra de Monsanto onde colhemos belos insectos e curiosas variedades de Helix lactea, aranhas, etc. Não é de todo pobre este país!’10

Por esta boa notícia se fica a saber que Adelina acompanha Francisco nas suas excursões e não seria apenas para cuidar do farnel. O tom cúmplice da primeira pessoa do plural, usada para narrar o episódio, permite pensar que também ela encara a natureza com olhar informado e seletivo. Aliás, na preparação da viagem de exploração aos Açores, uma lista de despesas pessoais previstas inclui a compra para Adelina de diversas peças de vestuário e calçado, adequadas ao trabalho de campo.11 Pequenos sinais de que, apesar da convicção da inferioridade intelectual feminina, Arruda Furtado cultiva com a mulher um companheirismo juvenil que a integra no seu universo de naturalista. Pode dizer-se, de resto, que este universo e a sua cultura envolvem tudo e todos à sua volta, porque o seu olhar não deixa de se maravilhar com o milagre da vida. O nascimento do filho, em julho de 1886, e a farta e saudável amamentação da criança, são factos comentados por Furtado em expressões de deslumbramento naturalista, nas cartas ao amigo e protetor Francisco Maria Supico: ‘Tomo a liberdade de lhe enviar o retrato do meu Carlos. É um belo exemplar! Eu digo muita vez à mãe que num belo dia me esqueço e o meto num bocal. O braço e o peito são magníficos e a expressão serena e inteligente é toda sua’.12

Programa de explorações malacológicas nos mares dos Açores

Assinatura e data no fl. 1v. do Programa de explorações malacológicas nos mares dos Açores.

Francisco de Arruda Furtado sofreu durante alguns meses de uma patologia grave das vias respiratórias, na época chamada tísica. Regressa à ilha de S. Miguel, na esperança de que a mudança de ares e as temperaturas amenas o ajudem a recuperar a saúde. Em vão. Com apenas 33 anos de idade, falece no dia 21 de junho de 1887, pelas 11 horas da noite13, numa casa da família de sua mulher, situada na Fajã de Baixo, nos arredores de Ponta Delgada.

Sócio da Sociedade de Geografia de Lisboa, Arruda Furtado estava proposto para sócio da Academia das Ciências de Lisboa. O seu falecimento foi noticiado em Lisboa, em jornais como o Diário de Notícias, O Século e o Jornal do Commercio, e nos Açores, onde o micaelense República Federal homenageou o seu antigo colaborador, reproduzindo todas as notícias conhecidas sobre o seu prematuro e lamentado desaparecimento.

Notas

1 Ernesto do Canto, Enciclopédia Açoriana, Centro de Conhecimento dos Açores, Direcção Regional da Cultura, http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/default.aspx?id=1268

2 AHMUL– MUHNAC, Ms., Ofício de Bocage ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino, 14 de Jan. de 1885, AF-15.

3 Correspondência Científica, Carta de A. Furtado a F. M. Supico de 1 de março de 1885, p. 536.

4 AHMUL– MUHNAC, (1886), Conjuntos documentais relativos à projetada História da Zoologia em Portugal, AF – 24, 25, 26, 27, 28 e 29.

5 Correspondência Científica, Carta de A. Furtado a C. Machado de 4 de junho de 1886, p. 610.

Programa de explorações malacológicas nos mares dos Açores

Cartografia das estações de dragagem programadas para a exploração malacológica dos Açores.

6 Correspondência Científica, Carta de A. Furtado a C. Machado de 4 de junho de 1886,p. 611.

7 AHMUL – MUHNAC, Fundo Arruda Furtado, Programa de explorações malacológicas nos mares dos Açores, 1885, AF – 7, 15 fls. Na unidade AF – 24 encontra-se um Ms. s/d intitulado A propósito da projectada exploração científica aos Açores, que permite contextualizar o referido Programa. Esta relação só poderá ser confirmada com maior rigor depois de pesquisas a efectuar oportunamente nos arquivos da Sociedade de Geografia de Lisboa.

8 AHMUL – MUHNAC, Fundo Arruda Furtado, A propósito da projectada exploração científica aos Açores, s/d, AF – 24, fl. 21.

9 BPARPD, Livro de Registo de Casamentos, São Sebastião, 1885, fl. 8.

10 Correspondência Científica, Carta de A. Furtado a H. M. Aguiar de 10 de junho de 1885, p. 556.

11 AHMUL – MUHNAC, Despesas inevitáveis com a exploração, AF-41, fls. 34-35. É muito provável que esta lista de despesas pessoais para a exploração aos Açores seja referente ao previsto Programa de explorações malacológicas nos mares dos Açores, de dezembro de 1885, Vide supra notas 45 e 46.

12 BPARPD, Fundo Armado Cortes-Rodrigues, Correspondência de Francisco Maria Supico.

13 BPARPD, Óbitos, São Sebastião, 1887, Registo n.º 37, fls. 13-13v.