Coleções, correspondentes e publicações
Coleções, correspondentes e publicações – a iniciação científica
É por esta altura que o trabalho intelectual do jovem escriturário-naturalista ganha uma nova dimensão. Assume-se como adepto do evolucionismo de Charles Darwin (1809-1882), desenvolve pensamento próprio com base neste quadro conceptual e na filosofia positivista, decide focar-se no estudo dos moluscos e evolui para novos métodos de trabalho: ‘Estudando os moluscos terrestres dos Açores era-me indispensável reunir-me do maior número de materiais de comparação ou próprios para educar a vista, quando de faunas muito distantes’.1 Começa, assim, por enviar o seu contacto para o Scientist’s Directory, um periódico americano que divulgava listas de colecionadores, facilitando as permutas de objetos naturais e os contactos internacionais. Depressa as respostas e as trocas permitem a Arruda Furtado alimentar a coleção do museu a troco de exemplares dos Açores, desenvolvendo simultaneamente perícia visual e conhecimento aprofundado da diversidade conquiológica.2
Por outro lado, desenvolve métodos de observação sistemáticos e quantificados e inicia uma prática laboratorial de dissecação e descrição da anatomia interna dos moluscos. Com meios limitados, Furtado disseca com duas agulhas adaptadas, uma pequena lanceta e pinças, usando, quando necessário, um microscópio emprestado por um amigo.3 O amadurecimento intelectual permite-lhe, a partir de então, um avanço metodológico que o vai distinguir dos restantes amadores locais de história natural. À tradicional prática lineana da procura de diferenças morfológicas externas, Arruda Furtado acrescenta a perspetiva da anatomia comparada, procurando estruturas internas comuns aos indivíduos, indiciadoras da sua origem, organização e distribuição geográfica, independentemente das divergências que o tempo, o isolamento geográfico, o ambiente e outras circunstâncias lhes tivessem provocado.
Paralelamente, porque a sua própria evolução científica exigia novos interlocutores, Arruda Furtado toma a iniciativa de contactar especialistas, para uns enviando espécimes locais para identificação e classificação, como é o caso das aranhas enviadas para o aracnologista francês Eugène Simon (1848-1924),4 a outros pedindo esclarecimentos e orientação para os seus trabalhos. Em 1880, quando escreve a Simon, tem já interesses científicos claros, explicando-lhe a sua opção pela investigação dos moluscos, não só pelos resultados mais seguros quanto à distribuição geográfica, mas também porque era, ‘no que diz respeito às espécies endémicas, completamente nova’.5 Nesse mesmo ano, publica o primeiro artigo sobre a matéria.6 E, referindo-se ao seu conteúdo, esclarece: ‘Abordei a questão da origem das espécies malacológicas açorianas e creio poder prosseguir com sucesso, na medida em que o estado da ciência mo permita, pela comparação dos organismos internos das espécies endémicas das nossas ilhas com os das espécies continentais’.7
Arruda Furtado criou uma rede de mais de 70 correspondentes, a maior parte dos quais nunca conheceu pessoalmente. Mas, pontualmente, ocorrem alguns contactos pessoais, com a ocasional chegada à ilha de S. Miguel de cientistas, alguns em escala, outros em expedições ou missões científicas. Um caso particular tem importância crucial para a visibilidade científica de Furtado.
Em setembro de 1880, o químico inglês Thomas Edward Thorpe (1845-1925) desloca-se aos Açores em missão do almirantado britânico, para confirmar os valores das medições magnéticas feitas pela expedição Challenger, em 1873. Nessa ocasião Thorpe visita o museu de Ponta Delgada e aí conhece Arruda Furtado e o trabalho que ele prepara sobre a Viquesnelia atlantica. Apercebendo-se da sua singularidade, uma vez que esta espécie era dada como existente apenas nos Açores e na Índia, Thorpe, impressionado, dá a conhecer o trabalho do jovem açoriano ao seu colega no Yorkshire College of Science de Leeds, o biólogo Louis Compton Miall (1842-1921). Este disponibiliza-se de imediato: ‘Eu devo dizer claramente que terei imenso prazer em prestar ao Sr. Furtado qualquer apoio que esteja ao meu alcance’.8 A proteção de Miall, bem como a iniciativa e a generosidade de Thorpe, fazem com que Furtado receba em pouco tempo diversos materiais de desenho, livros e um microscópio de dissecação. Mas Miall vai mais longe, disponibilizando-se para traduzir e fazer publicar o artigo sobre a Viquesnelia atlantica no periódico Annals and Magazine of Natural History.9
O biólogo inglês torna-se, na verdade, um tutor para Furtado, fazendo a apreciação crítica dos seus trabalhos e aconselhando-o em matéria de critérios de publicação. Para todos os efeitos, é pela sua mão que Arruda Furtado publica pela primeira vez num periódico científico, iniciando, assim, o seu percurso de credenciação internacional. Passado algum tempo, é distinguido com o título de membro honorário da The Leeds Philosophical & Literary Society.
Neste contexto, Arruda Furtado espreita a possibilidade de contactar o seu ídolo e mestre, Charles Darwin. À pergunta de Furtado: ‘(…) poderá dizer-me onde se encontra o Sr. Darwin?’, Miall responde: ‘O Sr. Darwin ainda vive em Bromley, Kent.’ O que se segue é uma breve mas significativa troca de correspondência entre o irrequieto naturalista açoriano de 27 anos e um Darwin já idoso, com a venerável idade de 72 anos.
Apresentando-se como estudioso da malacologia insular, Arruda Furtado afirma procurar fazer alguma luz sobre a origem das espécies açorianas e, simultaneamente, ‘não perder um único facto que possa trazer uma prova, por fraca que seja, à sua teoria’.10 Apesar de muito debilitado, Darwin não deixa de se sentir estimulado pela admiração e pelas questões do seu jovem correspondente, regozijando-se pelas pesquisas possíveis num meio insular tão favorável como os Açores e enviando-lhe um detalhado programa metodológico. Embora as práticas aconselhadas não sejam propriamente novidade para Furtado, a resposta é a de um discípulo emocionado: ‘mas é ao seu livro que eu devo o conhecimento delas e o senhor sabe bem o que significará para mim tê-las, reunidas e escritas pela sua mão’.11
De resto, põe de imediato em prática alguns dos preceitos aconselhados, solicitando a colaboração dos faroleiros da ilha e de alguns caçadores para a recolha de aves de arribação e realizando pessoalmente a coleta de exemplares animais e vegetais em zonas de altitude. Para a identificação e o estudo das plantas recolhidas, Darwin aconselha Furtado a enviá-las a Joseph Dalton Hooker (1817-1911), dos Kew Gardens de Londres, o que motiva posterior correspondência entre ambos.12 À semelhança do que acontecera com Simon, que alargara as relações científicas de Furtado, pondo-o em contacto com Maurice Sédillot (1849-1933) e Maurice Chaper (1834-1896), também Darwin cumpre os ‘rituais’ das redes científicas, ao recomendar o contacto com Hooker e ao enviar-lhe o trabalho de um promissor especialista dos estudos evolutivos, Alfred Russel Wallace (1823-1913).
Pouco antes do primeiro contacto com Darwin, Arruda Furtado fizera a sua primeira publicação de divulgação científica. No folheto O Homem e o Macaco, em resposta às críticas ao darwinismo feitas nos sermões pascais desse ano, Furtado usa linguagem acutilante e panfletária.13 Mas não perde a oportunidade de divulgar, apresentando as linhas fundamentais da conceção darwiniana e defendendo a evolução das espécies por seleção natural. A polémica prolonga-se por algum tempo, com ecos nas ilhas de S. Miguel e Terceira.14 Apesar dos ataques da imprensa mais conservadora, Arruda Furtado acredita na superioridade moral da ciência e das suas evidências positivas, pelo que se mostra convicto dos seus efeitos proselitistas. Terá sido o desejo de ganhar um aliado de prestígio que o leva a oferecer um exemplar ao seu patrão, homem culto e viajado, o senhor José do Canto. As cartas que ambos escreveram a este propósito ilustram a controvérsia social e cultural gerada pelo darwinismo, a que os Açores não ficaram alheios.15
Nesta primavera ideologicamente agitada em Ponta Delgada, Arruda Furtado terá feito uma tentativa de aproximação à Secção Zoológica do Museu de Lisboa, na Escola Politécnica. De facto, é desta época um documento de apresentação intitulado Escritos e Relações científicas de F. Arruda Furtado. Nele, Furtado elenca as publicações feitas até então e, no rescaldo ainda quente da publicação de O Homem e o Macaco, afirma que quisera ‘provocar alguma atenção sobre a grande teoria de Darwin e pelo menos numas 20 pessoas não foi baldado o intento’16. O documento relata ainda os episódios da sua relação com Thorpe e Miall e a subsequente publicação do artigo sobre a Viquesnelia atlantica, sublinhando que ‘é o primeiro trabalho em que a anatomia do género Viquesnelia se torna conhecido.’
Se este documento teve como destinatário o zoólogo José Vicente Barbosa du Bocage (1823-1907), não se sabe. Mas, a procura do patrocínio científico de Bocage, fosse para trabalhar no museu ou, simplesmente, para conseguir publicar em periódico nacional credenciado, é hipótese que não andará longe do que aconteceu. De facto, passados alguns meses, o artigo sobre a anatomia interna da Viquesnelia atlantica é publicado em Portugal, no Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes17, o que significa o aval da Academia das Ciências de Lisboa.
Notas
1 Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa – Museu Nacional de História Natural e da Ciência (AHMUL – MUHNAC), Arruda Furtado, A propósito da projectada exploração científica dos Açores, AF-24, fl. 20.
2 Já em Lisboa, em 1885, Furtado garante que ‘pude formar em dois anos uma colecção de perto de 800 espécies contendo muitas acabadas de descrever, outras ex auctor, a qual acabo de oferecer à secção zoológica do Museu de Lisboa’, AHMUL – MUHNAC, A. Furtado, A propósito, fl. 20.
3 Correspondência Científica de Francisco de Arruda Furtado, Introdução, levantamento e notas de Luís M. Arruda, Ponta Delgada: Instituto Cultural, 2002. Carta a L. C. Miall de 16 junho 1881, p. 89.
4 Correspondência Científica, Correspondência trocada entre A. Furtado e E. Simon pp. 23-50.
5 Correspondência Científica, p. 29. A presente citação e todas as que se seguem serão apresentadas em versão portuguesa, da responsabilidade da autora.
6 O artigo foi publicado num periódico dedicado a questões de pensamento e cultura, mantido por Teófilo Braga e editado por António Arruda Furtado, irmão do autor. ‘Indagações sobre a complicação das maxilas de alguns hélices naturalizados nos Açores com respeito às das mesmas espécies observadas por Moquin-Tandon em França’, A Era Nova, 3 (1880) 135-147.
7 Correspondência Científica, Carta de A. Furtado a T. E. Thorpe de 22 de outubro de 1880, pp. 53-54. Correspondência trocada entre A. Furtado e T. E. Thorpe, pp. 53-63.
8 Correspondência Científica, p. 55. Correspondência Científica, Correspondência trocada entre A. Furtado e L. C. Miall, pp. 78-103.
9 Francisco de Arruda Furtado, ‘On Viquesnelia atlantica , Morelet & Drouet’, Annals and Magazine of Natural History , 5 (7) (1881), 250-255.
10 Correspondência Científica, Carta de A. Furtado a C. Darwin de 13 de junho de 1881, p. 107. Correspondência trocada entre A. Furtado e C. Darwin, pp. 107-118.
11 Correspondência Científica, Carta de A. Furtado a C. Darwin de 29 de julho de 1881, p. 111.
12 Correspondência Científica, Correspondência entre A. Furtado e J. D. Hooker, pp. 145-147.
13 Francisco de Arruda Furtado, O Homem e o Macaco. (Uma questão puramente local), Ponta Delgada, 1881.
14 Na ilha Terceira, em artigos publicados no periódico Álerta!, durante o ano de 1881, teve expressão a linha ideológica evolucionista e materialista.
15 BPARPD – Fundo JC, Mss., cartas apensas ao exemplar de O Homem e o Macaco com dedicatória a José do Canto. Ver transcrição, com ortografia atualizada, da Carta de Francisco de Arruda Furtado a José do Canto e da Carta de José do Canto.
16 AHMUL– MUHNAC, Fundo Museu Bocage, Escritos e Relações scientificas de F. Arruda Furtado, Ms. DIV-573, fl. 1v.
17 Francisco de Arruda Furtado, ‘Viquesnelia atlantica, Morelet & Drouet’, Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, 1 (8) (32) (1882) 305-308.