Arte e Natureza
Arte e Natureza – o despertar de uma vocação
Francisco de Arruda Furtado nasce em Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel (Açores) a 17 de setembro de 1854.1 Filho de Francisco d’Arruda Furtado e de Maria Guilhermina de Vasconcelos, é o mais velho de cinco irmãos, acerca dos quais escasseiam informações. Da mais nova, Maria Teresa, sabe-se que nasceu em 1862, mas é de António, nascido em 1858, que existem registos de maior significado, uma vez que aparece referido como companheiro de explorações do irmão naturalista, para além dos indícios da sua colaboração em Lisboa com Teófilo Braga (1843-1924), no periódico Era Nova.
A morte prematura da mãe (1865) e o posterior suicídio do pai (1877) tê-lo-ão marcado duramente, mas pouco refere a família nos seus escritos. Apenas faz breve referência às tias que o criaram2 e ao irmão António, num artigo de caráter autobiográfico, em que lembra ingénuas excursões naturalistas dos tempos de adolescentes.3 Não tem, no entanto, formação de história natural no Liceu de Ponta Delgada, que frequenta entre 1866 e 1870, numa altura em que as ciências da natureza ainda não integram o programa liceal.4
O seu talento para o desenho faz-se notar desde então, obtendo nesta disciplina os melhores resultados. A qualidade técnica que os seus desenhos e ilustrações científicas viriam a atingir indicia alguma formação complementar em desenho e gravura, provavelmente fruto da proximidade com alguns editores de jornais como, por exemplo, os irmãos João (1853-1916) e Augusto Cabral (1856-1924), jornalistas, caricaturistas e proprietários da Litografia Lusitana, no centro de Ponta Delgada.5 O facto de pertencerem todos à mesma faixa etária e ao mesmo grupo6 aponta para esta relação formativa, aparecendo João Cabral na imprensa identificado como professor de desenho. É, no entanto, o mano Augusto quem assina a caricatura de Arruda Furtado publicada n’O Binóculo, em 1884, numa altura em que as suas convicções darwinistas já tinham dado matéria para alguns sobressaltos locais.7
A paixão naturalista e as controvérsias públicas não o impedem, todavia, de dar visibilidade ao seu talento artístico. Em maio de 1882, na Exposição de Artes, Ciências e Letras Micaelenses, de cuja Comissão promotora faz parte, Arruda Furtado expõe duas paisagens, uma desenhada a carvão e outra pintada a óleo, a par de vários ‘desenhos de anatomia animal e vegetal’, que atestam os novos rumos da sua vocação artística.
Francisco de Arruda Furtado começa a trabalhar como amanuense da Repartição da Fazenda do Distrito e, a partir dos 22 anos, torna-se escriturário da Casa de José do Canto. Apesar do conselho do pai no sentido de se manter na função pública, por mais segura e com garantia de reforma, Francisco sente-se honrado e acede ao convite de José do Canto (1820-1898),8 para quem trabalhará durante 7 anos.
Nessa época é já um naturalista autodidata em formação, pupilo do naturalista Carlos Maria Gomes Machado (1828-1901),9 com quem colabora, a partir de 1876, na criação de um museu de história natural no liceu de Ponta Delgada. Construído a partir de exemplares didáticos e das coletas de ambos, e enriquecido com outras contribuições locais e de museus nacionais e estrangeiros, o Museu Açoreano é inaugurado no dia 10 de junho de 1880, dia das comemorações nacionais do tricentenário de Camões. Um dia histórico, a merecer ser lembrado nas palavras de regozijo de Arruda Furtado acerca da abertura ao público do museu: ‘Foi um verdadeiro triunfo. A sala conservou-se cheia por três dias (…) Eu considero-me o mais feliz dos homens, porque amando a história natural desde os doze anos, foi-me dado acompanhar todos os trabalhos que formaram o nosso gabinete’.10 Motivados pela excelente localização dos Açores, propícia aos estudos de distribuição geográfica das espécies e dos processos evolutivos, Carlos Machado e Arruda Furtado trabalham arduamente para criar na ilha de S. Miguel um museu onde a comunidade científica pudesse possa aceder à singularidade das espécies insulares.11
Notas
1 Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada (BPARPD), Baptismos, Lv. 42 S. José B, 1852-1855.
2 Francisco de Arruda Furtado, A minha saída da casa do sr. José do Canto, Ponta Delgada, Typ. Popular, 1884, p. 8.
3 Francisco de Arruda Furtado, ‘Variedades – Ciência e Natureza (Carta a António Furtado)’, Era Nova, 1 (1880) 83-88. Também o engenheiro e mineralogista Alfredo Bensaúde deixou testemunho destas excursões: ‘interessava-me por tudo o que dizia respeito a história natural, de companhia com Francisco de Arruda Furtado, um dos meus preferidos amigos de infância, que era um autêntico naturalista nato.’ Alfredo Bensaúde, Vida de José Bensaúde, Porto, Litografia Nacional, 1936, p. 199.
4 No ano letivo de 1866/67 frequentou Português, Francês, Latim e Desenho; no ano letivo de 1867/68 as mesmas disciplinas, trocando apenas Francês por Inglês. Em 1868/69, apesar de ter frequentado Latim, Latinidades e Português, só fez um exame a estas disciplinas, faltando aos restantes, porque ‘Deixou de frequentar’ (Livro de Registo de Exames, pp. 40 e 43). A Desenho cumpriu os três exames do ano com a classificação de Bom. Finalmente, em 1869/70, com 15 anos, fez exames com êxito a Latim, a Desenho Linear e a uma terceira disciplina, cujo registo está ilegível. Estas informações encontram-se no Livro de Matrículas 1860-1868 e no Livro de Registo de Exames de Frequência do Arquivo da Biblioteca da Escola Secundária Antero de Quental (antigo Liceu de Ponta Delgada).
5 Manuel Ferreira, O Caricaturista Micaelense Augusto Cabral, Ponta Delgada, Nova Gráfica, 2002, p. 16.
6 Num epitáfio publicado no Pist!, de 23 de junho de 1887, João Cabral assinala o falecimento de Arruda Furtado, ‘seu companheiro de infância, amigo sincero ’
7 O Binóculo n.º 66, Ponta Delgada, 3 de fevereiro de 1884.
8 José do Canto, Enciclopédia Açoriana, Centro de Conhecimento dos Açores, Direcção Regional da Cultura, http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/default.aspx?id=1274
9 Carlos Maria Gomes Machado, Enciclopédia Açoriana, Centro de Conhecimento dos Açores, Direcção Regional da Cultura, http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/default.aspx?id=7882
10 Francisco de Arruda Furtado, ‘Variedades – Ciência e Natureza (Carta a António Furtado)’, in Obra Científica de Francisco de Arruda Furtado, Introdução, levantamento e notas de Luís M. Arruda, Ponta Delgada, Angra do Heroísmo, Instituto Cultural de Ponta Delgada e Instituto Açoriano de Cultura, 2008, p. 501.
11 ‘ A questão do museu local açoriano é quase uma questão científica internacional; é-o, com certeza, e nós ousamos apelar para ela toda a atenção do governo português e mesmo de estabelecimentos científicos estrangeiros, que aqui encontrarão, pelo menos, uma preciosa fonte de informações de factos e de exemplares.’ Francisco de Arruda Furtado, ‘Revue Scientifique – Les Açores au [sic, du] point de vue scientifique’, Gazette française du Portugal, 2 (1884), in Obra Científica, p. 493.